Monteiro Lobato – Viagem ao Céu

Viagem ao céu

 Capítulos 4, 5 e 6

  

4 – O céu de noite

Estava um céu lindo, transparente como cristal. O assanhamento do brilho das estrelas parecia os olhos dos meninos quando viam a bandeja de doces que o Coronel Teodorico mandava no dia dos anos de Dona Benta. Antes de levantarem a toalha da bandeja, os olhos de todos ali no sítio ficavam como as estrelas daquela noite.

Dona Benta tomou fôlego e falou, apontando para o céu: — Olhem lá aquelas quatro formando uma cruz! É a constelação do Cruzeiro do Sul. Constelação quer dizer um grupo de estrelas. Esta constelação do Cruzeiro é a de maior importância para os povos que vivem do equador para o sul, como nós. Tem a mesma importância da célebre constelação da Ursa Maior para os povos que vivem ao norte do equador, como os europeus e norte-americanos. O Cruzeiro do Sul é o nosso relógio noturno. No dia 15 de maio de cada ano essa constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças, como o sol ao meio-dia, e então sabemos que são exatamente nove horas da noite.

— Que engraçado! — exclamou Pedrinho. — Estamos em fins de abril. Logo chegaremos ao 15 de maio — e eu vou acertar o nosso relógio da sala de jantar pelo Cruzeiro do Sul. Que beleza, hein, vovó?

— Sim, meu filho. Saber é realmente uma beleza. Uma isquinha de ciência que você aprendeu e já ficou tão contente. Imagine quando virar um verdadeiro astrônomo, como o Flammarion!

— Aí, então, ele fica com cara de bobo, a rir o dia inteiro, só de gosto da ciência que tem lá por dentro — disse Emília.

Dona Benta achou graça e continuou a falar do Cruzeiro.

— As quatro estrelas do Cruzeiro — disse ela — são designadas por meio de letras gregas. Gama é a estrela do topo da cruz; alfa é a do pé da cruz; beta e delta formam os braços.

— Mas por que essas estrelas são tão importantes? — quis saber Pedrinho.

— Por causa da disposição regular em forma de cruz, dis­posição que as torna de fácil encontro no céu. Num instante a gente corre os olhos e encontra o Cruzeiro. Encontrar as outras constelações já é mais difícil — exige prática; mas o Cruzeiro até a boba da Tia Nastácia descobre no céu. Não há por aqui caboclo da roça, nem há negro da África, nem atorrante da Argentina, nem gaúcho do Uruguai, nem índio de todas as repúblicas da América do Sul, nem selvagem australiano, nem negro do Congo, Moçambique ou Hotentótia, nem bôer da Co­lônia do Cabo, nem papua da Nova Guiné, que não conheça o Cruzeiro.

— Então Robinson Crusoe também via o Cruzeiro, vovó! — lembrou Pedrinho. — A ilha dele era a de Juan Fernández, que fica ao sul do equador, perto das costas do Chile.

— Exatamente, meu filho. Quantas vezes Robinson e o seu bom índio Sexta-Feira não estiveram, como nós agora, a olhar para as quatro estrelas do Cruzeiro!…

— Estou vendo-as — disse Narizinho. — Duas estrelas maiores e duas menores…

   — Sim, as maiores são a alfa e a gama e são também das mais brilhantes dos céus do sul.

— E qual é a mais brilhante de todas, vovó?

— Aqui nos céus do sul é uma da constelação do Centau­ro, que fica logo ao lado do Cruzeiro.

— Qual é ela? — perguntou Pedrinho.

Dona Benta riscou o céu com o dedo, dizendo:

— Se você tirar uma linha que toque na delta e na beta do Cruzeiro e a prolongar nesta direção (e o dedo de Dona Benta ia riscando), essa linha vai encontrar duas estrelas da constelação do Centauro, justamente a alfa e a beta do Centauro — e pronto! Você terá achado a constelação do Centauro, que é das maiores dos céus do sul. E nessa constelação a estrela alfa é uma das mais conhecidas de todas. É a terceira em brilho de todo o céu e uma das mais próximas de nós.

— E aquela mancha negra que estou vendo lá? — perguntou a menina, apontando.

— Pois aquilo é o célebre Saco de Carvão da Via-láctea. Repare na beleza da Via-láctea, que fica atrás do Cruzeiro. Em certo ponto escurece. Isso quer dizer que naquele ponto há uma nebulosa escura que tapa as estrelas — e por isso recebeu o nome de Saco de Carvão.

Pedrinho não tirava os olhos das estrelas da constelação do Centauro.

— Por que, vovó, deram o nome de Centauro àquelas estrelas? Que relação há entre elas e os monstros meio cavalos e meio homens da mitologia grega?

Dona Benta assoprou.

— Ah, meu filho, os astrônomos, que são homens de mui­ta imaginação, acharam que uma linha ligando todas as estrelas desse grupo lembra a forma dum Centauro.

— Mas lembra realmente?

— Olhe e decida por si mesmo — e Dona Benta indicou as principais estrelas da constelação do Centauro. Pedrinho li­gou-as com uma linha imaginária e não viu formar-se centauro nenhum.

— Estou vendo, vovó, que os astrônomos possuem ainda mais imaginação do que a Emília…

— E assim são as linhas que você tirar de todas as outras constelações — continuou Dona Benta. — Umas dão uma vaga ideia de qualquer coisa; outras, só com muita força de imaginação lembram as coisas indicadas pelo nome. Temos ali (e o seu dedo apontava) a constelação do Pavão. E temos aquela ali que é a do Tucano… Ah, meus filhos, não há nada mais poético do que a astronomia, ou ciência dos astros! Está aí uma aventura que vocês podem realizar um dia: um passeio pelas constelações!… Que lindo! Podiam começar pela estrela Polar, que nós não vemos daqui, mas que para as criaturas humanas é a mais importante.

— Por que, vovó?

— Porque foi a bússola das mais antigas civilizações. Os egípcios, os babilônios, os chineses, os hindus, todos os velhos povos ao norte do equador, guiavam-se por essa estrela, que está sempre visível e marca o polo. Fica bem em cima do polo norte. E perto dela ficam duas constelações muito célebres, a Ursa Menor e a Ursa Maior.

— Por que têm esses nomes? — quis saber Narizinho.

— Porque os mais antigos astrônomos lhes deram esses nomes. Não podiam dar o nome de Tucano ou qualquer bicho das zonas quentes, próximas do equador. Deram-lhes o nome do animal que gosta de viver nos gelos — o urso polar. Por essa estrela se guiavam os navegantes do norte, no tempo em que não havia a bússola. Depois da bússola os navegantes dispensaram as estrelas — a agulhinha da bússola está sempre voltada para o norte.

— E as outras constelações?

— Ah, meu filho, há tantas… E inúmeras designadas por meio de nomes de animais, como as do Escorpião, do Leão, do Cavalo, do Carneiro, dos Peixes, do Cisne, da Lebre, da Hidra, do Corvo, do Peixe-Voador, da Abelha, da Ave-do-Paraíso, da Girafa, da Raposa, do Lagarto, da Rena, do Gato…

— E a tal Cabeleira de Berenice, que a senhora falou tanto outro dia? — quis saber Pedrinho.

— Ah, essa constelação tem um nome muito romântico. Trata-se duma história meio compridinha…

— Conte, conte — pediram todos — e Dona Benta contou a história dos cabelos da Princesa Berenice, esposa de Ptolomeu Evergete, rei do Egito.

— Este Ptolomeu — disse ela — havia partido à frente duma expedição guerreira contra a Síria; e, tomada de medo, Berenice fez à deusa Vênus a promessa de cortar a sua linda cabeleira e depositá-la no templo da deusa, caso Evergete voltasse vivo e vitorioso. Ora, o rei voltou vivo e vitorioso e a rainha cumpriu o voto: cortou os cabelos e depositou-os no templo da deusa. Mas aconteceu uma coisa inesperada: no dia seguinte a cabeleira havia desaparecido do templo!… E vai então, um astrônomo da ilha de Samos, que acabava de descobrir no céu uma nova constelação, mandou dizer ao rei que a cabeleira de Berenice estava lá: eram as sete estrelas que ele havia descoberto entre as constelações do Leão e de Arturus — e desde esse tempo o grupo das sete estrelas passou a ser conhecido sob o poético nome de Cabeleira de Berenice.

— Que lindo! — exclamou a menina. — Quando eu tiver uma gatinha, vou botar-lhe o nome de Berenice…

— Há constelações de nomes ainda mais curiosos — continuou Dona Benta — como a da Coroa, da Lira, da Flecha, do Altar, da Balança, do Relógio, do Telescópio, da Oficina Tipo­gráfica, etc. E há as de nome poético, como essa da Cabeleira de Berenice, a da Pomba de Noé, a dos Cães de Caça, a da Harpa de Jorge, a do Buril do Gravador, a do Escudo de Sobieski, a do Coração de Carlos II, a da Cabeça de Medusa, a do Homem Ajoelhado, etc. E há a de Sírio ou do Cão Maior, onde aparece a mais bela estrela do nosso céu, afastadíssima de nós. Imaginem que Sírio está a mais de 81 trilhões de quilô­metros de distância — isto é, a 540.000 vezes a distância en­tre a Terra e o Sol…

— E qual é a distância entre a Terra e o Sol?

— É de mais de 150 milhões de quilômetros. Sírio está tão longe de nós que sua luz gasta quase nove anos para chegar até aqui — e, no entanto, a velocidade da luz é uma coisa louca. Vamos ver quem sabe qual é a velocidade da luz. Eu já contei.

Pedrinho lembrava-se.

— É de 300.000 quilômetros por segundo — disse ele.

— Por segundo? — admirou-se Narizinho. — Então enquanto eu pisco os olhos a luz vai daqui até… até… Trezentos mil quilômetros é daqui até onde, vovó?

— É fora deste nosso mundinho, menina, porque você bem sabe que só com 40.000 quilômetros a gente já dá a volta em redor da Terra.

— Então quer dizer que, enquanto eu abro e fecho os olhos, a luz faz sete vezes e meia a volta da Terra?

— Isso mesmo.

— Puxa! Já é ser apressadinha…

— É que a luz tem botas de 300.000 léguas — lembrou Emília. — Imaginem o coitadinho do Pequeno Polegar, com suas botinhas de sete léguas, apostando corrida com a luz! Enquanto ele dava um passo, a luz dava sete…

— Sete o quê, Emília?

— Sete voltas em redor da Terra. Maior danada não pode existir.

 

5 – O telescópio

Por longo tempo lá ficaram na varanda ouvindo as histórias do céu. Dona Benta parecia um Camilo Flammarion de saia. Esse Flammarion foi um sábio francês que escreveu livros lindos e explicativos. “Quem não entender o que esse homem conta”, costumava dizer Dona Benta, “é melhor que desista de tudo. Seus livros são poemas de sabedoria, claríssimos como água.”

Quem mais se interessou por aqueles estudos foi Pedrinho. Sonhou a noite inteira com astros e no dia seguinte pulou da cama com uma ideia na cabeça: construir um telescópio! “Que é, afinal de contas, um telescópio?”, refletiu ele. “Um canudo com uns tantos vidros de aumento dentro. Esses vidros aumentam o tamanho dos astros, de modo que eles parecem ficar mais próximos — foi como disse vovó.”

E logo depois do café da manhã tratou de construir um telescópio. Canudos havia no mato em quantidade — nas moitas de taquara; e vidros de aumento havia no binóculo da vovó. Pedrinho serrou os canudos necessários, de grossuras bem calculadas, de modo que uns se encaixassem nos outros, colocou lá dentro as lentes do binóculo de Dona Benta e fez uma armação de pau onde aquilo pudesse ser manobrado com facilidade, ora apontando para este lado, ora para aquele.

Enquanto ia construindo o telescópio, dava aos outros, reunidos em redor dele, amostras da sua ciência.

— O telescópio saiu da luneta astronômica inventada por aquele italiano antigo, o tal Galileu. Um danado! Inventou também o termômetro e mais coisas.

— Mas telescópio é invenção que até eu invento — disse Emília. — É só cortar canudos de taquara e grudar uns monóculos dentro…

Pedrinho ia respondendo sem interromper o serviço.

— Parece fácil, e é fácil hoje que a coisa já está sabida. Mas o mundo passou milhões de anos sem conhecer este meio tão simples de ver ao longe, até que Galileu o inventou. Também para tomar a temperatura das coisas nada mais simples do que fazer um termômetro — um pouco de mercúrio dentro dum tubinho de vidro, mas foi preciso que Galileu o inventasse. Tudo na vida são “ovos de Colombo”.

Depois de pronto o telescópio, houve discussão quanto ao astro que veriam primeiro.

— Eu acho que o primeiro tem que ser o Sol, que é o pai de todos — disse Narizinho.

— E eu acho que deve ser a Grande Ursa, porque é um bicho raro — propôs Emília.

Pedrinho riu-se com superioridade.

— A Grande Ursa não pode, boba, porque fica nos céus do norte. Estes céus aqui são os céus do sul. E o senhor que acha, Doutor Livingstone? — perguntou ele ao Visconde.

O Doutor Livingstone respondeu batendo na bibliazinha.

— Deus fez por último as estrelas, como diz aqui o Gênesis, mas Cristo disse que os últimos serão os primeiros. Logo, temos de começar pelas estrelas.

Todos se admiraram daquela sabedoria, mas Pedrinho não se contentou. Quis também consultar Tia Nastácia lá na cozinha.

— E você, Tia Nastácia, que acha? — perguntou-lhe.

A negra, que acabava de matar um frango, foi de opinião que o bonito seria começar pela Lua, “onde São Jorge vive toda a vida matando um dragão com sua lança!”

A ideia foi recebida com palmas e berros.

— O dragão! O dragão! Viva São Jorge!… — exclamaram todos — e a lembrança de Tia Nastácia foi vencedora. Uma linda lua cheia estava empalamando no céu. Pedrinho apontou para ela o telescópio. Espiou e nada viu. Emília, porém, viu coisas tremendas.

— Estou vendo, sim! — gritou ela. — Estou vendo um dragão verde, tal qual lagarto, com uma língua vermelha de fora. Língua de ponta de flecha. São Jorge, a cavalo, está espetando a lança no pescoço do coitado…

— Será possível? — exclamou Pedrinho, afastando-a do telescópio para espiar de novo — mas continuou a não ver nada.

— Você está sonhando, Emília. Não se vê nem a Lua, quanto mais o dragão.

— Pois eu vejo tudo com o maior “perfeiçume” — insistiu Emília voltando ao telescópio. — Um dragão de escamas… Com unhas afiadas… Um rabo comprido dando duas voltas.

Os meninos entreolharam-se. Verdade ou mentira? A boneca tinha fama de possuir uns olhos verdadeiramente mágicos — mas quem podia jurar sobre o que ela afirmava? A ânsia de ver coisas, porém, era maior que a dúvida, de modo que resolveram aceitar como verdade as afirmações da Emília e nomeá-la a “olhadeira do telescópio”. Ela que fosse vendo tudo e contando aos outros.

Emília começou. Depois de enumerar todas as coisas que viu na Lua, apontou o telescópio para uma estrela qualquer.

— Xi — exclamou fazendo cara de espanto. — Como é peluda!… E tem dois ursinhos ao colo… Está brincando com um de cara preta… Agora franziu a testa… Parece que percebeu que estamos apontando para lá… Com certeza pensa que este telescópio é espingarda… A Grande Ursa é enormíssima…

— A Grande Ursa não é estrela daqui, Emília. Vovó já disse. Você está nos bobeando — gritou Pedrinho meio zangado.

Mas Emília continuou a ver coisas e a insistir que era realmente uma estrela Ursa. “Com certeza cansou-se dos gelos polares e chegou cá a estes céus do sul para esquentar o corpo…”

Pedrinho deu-lhe um peteleco.

 

6 – Viagem ao céu

Daquela brincadeira do telescópio nasceu uma ideia — a maior ideia que jamais houve no mundo: uma viagem ao céu! A coisa parecia impossível, mas era simplicíssima, porque ainda restava no bolso de Pedrinho um pouco daquele pó de pirlimpimpim que o Peninha lhe dera na viagem ao País das Fábulas. A quantidade existente bastava para levar seis pessoas.

— O bom seria irmos todos — propôs a menina. — Todos menos vovó, coitada. Sofreu tanto lá com o Pássaro Roca, que bem merece um bom descanso-de-lagarto.

— Mas Tia Nastácia não há de querer ir — lembrou Pedrinho. — É a maior das medrosas.

— Pois levemo-la à força — sugeriu Emília.

— Como?

— Muito fácil. Ninguém lhe diz nada dos nossos projetos. Na hora de partir, Narizinho faz cara de santa e lhe dá uma pitada do pó dizendo que é rapé. Ela adora o rapé…

— Não está mal pensado — disse Pedrinho. — E o Burro Falante? Vai ou fica?

— Vai — decidiu Narizinho. — Vamos ter muita neces­sidade dele na Lua. E se lá vive o cavalo de São Jorge, pode muito bem viver um burro.

Tudo bem assentado, puseram-se a cuidar dos preparati­vos. Dessa vez Emília não pensou em levar a sua canastrinha. Levou outra coisa — uma coisa que ninguém pôde descobrir o que era. Um “bilongue” pequenininho, embrulhado em papel de seda e amarrado com um fio de lã cor-de-rosa. Narizinho insistiu em saber o que era.

— Não digo, não! — respondeu a boneca. — Se eu disser vocês caçoam. É uma ideia muito boa que eu tive…

No dia seguinte, bem cedo, levantaram-se na ponta dos pés e saíram para o terreiro, enquanto Narizinho se dirigia ao quarto de Tia Nastácia. Tinha de enganá-la, mas como? Pensou, pensou e afinal resolveu-se.

— Tia Nastácia! — gritou do lado de fora da janela. — Venha ver que manhã linda está fazendo.

A negra estranhou a novidade. Levantarem-se cedo assim não era comum, e ainda menos Narizinho convidá-la para “ver a manhã”, uma coisa tão à toa para uma negra que se levanta sempre às cinco horas. Mas foi ao terreiro ver o que era, com aqueles resmungos de sempre. Lá encontrou todos reunidos em redor do Burro Falante e a cochicharem baixinho:

— Hum! Temos novidade — murmurou a preta consigo, já na desconfiança. — Qual é a “peça” de hoje, Pedrinho?

— Nada, boba! Que peça havia de ser? É que nos deu na cabeça levantarmos muito cedo para assistirmos ao nascer do sol e agora estamos brincando de espirrar com este rapé que arranjei na cidade.

— Rapé? Rapé? — repetiu a preta, que era doidinha por uma pitada de rapé. — Será daquele que o Coronel Teodorico, compadre de Dona Benta, usa?

O Coronel Teodorico, fazendeiro vizinho de Dona Benta, aparecia por lá de vez em quando a visitá-la. Era compadre de Dona Benta, homem dos bem antigos, dos que até rapé ainda tomam. O tal rapé não passa de fumo torrado e moído; quem o aspira pelo nariz espirra — e parece que o gosto é esse: espirrar… Napoleão foi um grande tomador de rapé. Hoje pouca gente usa tal coisa, só os homens muito carrancas e con­servadores, como aquele compadre de Dona Benta.

— Pois quero experimentar, sim — disse a negra. — O coronel chupa esse rapé com tanto gosto que sempre tive desejo de ver se a marca é boa — e assim falando tomou o pó que o menino lhe apresentava e sem desconfiança nenhuma aspirou-o. Assim que a negra fez isso, os outros fizeram o mesmo, inclusi­ve o burro e… mais nada! Veio aquele fiunnn no ouvido, e depois a tonteira própria do pó de pirlimpimpim, e todos per­deram a consciência. Estavam voando pelo espaço com a velo­cidade quase da luz.

Súbito, perceberam que haviam chegado. Começaram a abrir os olhos. No começo nada viram. Tudo muito embaralha­do. Por fim as coisas se foram aclarando e puderam olhar em torno. Estavam numa terra esquisitíssima, sem gente, sem vida, toda cheia de picos de montanhas em forma de crateras de vulcões extintos. Todos haviam voltado a si, menos Nastácia. A pobre negra, que pela primeira vez naquele dia aspirava o pó de pirlimpimpim, estava escarrapachada no chão, com os olhos arregaladíssimos — mas sem ver nem sentir coisa nenhuma.

— Temos de esperar que ela acorde — disse Pedrinho. — Parece que a boba tomou dose dupla…

Esperaram alguns minutos, até que a negra começou a dar mostras de estar voltando a si. Passou a mão pela cara, esfregou os olhos e, correndo-os em torno, disse com voz sumida:

— Que será que me aconteceu? Amode que caí num poço…

— Não caiu nada, bobona. Você está conosco num astro qualquer no céu.

— No céu?!… — repetiu a preta, arregalando ainda mais os olhos. — Deixem de pulha. Para que enganar uma pobre velha como eu?

— Não estamos enganando ninguém, Nastácia — disse Pedrinho. — Estamos, sim, no céu, num astro que ainda não sabemos qual é.

O assombro da negra foi tamanho que não achou palavra para dizer. Nem o seu célebre “Credo!” ela murmurou. Que­dou-se imóvel onde estava, a olhar ora para um, ora para outro, de boca entreaberta.

— Eu acho que isto aqui é o Sol — declarou Emília. — Apenas estou estranhando não ver nenhuma floresta de raios.

— O disparate está de bom tamanho! — caçoou Pedrinho. — Não sabe que o Sol é mais quente que todos os fogos e que se estivéssemos no Sol já estávamos torrados até o fundo da alma? Pelo que vovó nos explicou, isto está com cara de ser a Lua — mas não tenho certeza. De longe é muito fácil conhe­cer a Lua — aquele queijo que passeia no céu. Mas de perto é dificílimo. O melhor é mandarmos o Doutor Livingstone a um astro próximo para de lá nos dizer se isto é mesmo a Lua ou o que é.

Uma pequena dose do pó de pirlimpimpim foi enfiada no nariz do antigo Visconde, o qual imediatamente se sumiu no espaço. Emília deixou passar uns segundos e gritou para o ar:

— É a Lua ou não, Doutor Livingstone?

Mas nada de resposta. A distância devia ser muito grande, de modo que a vozinha rouca do Doutor Livingstone não podia chegar até eles.

— Que asneira fizemos! — exclamou Pedrinho. — De­víamos ter pensado nisso — que era impossível que a vozinha do Visconde pudesse varar a imensidão do espaço. Além disso, para onde será que ele se dirigiu? Em que astro foi parar? Há milhões e milhões de astros por essa imensidade afora…

— Milhões e milhões, Pedrinho? Não acha meio muito? — duvidou a menina.

— Pois é o que dizem os astrônomos. O espaço é infinito. Sabe o que é ser infinito? É não ter fim, nunca, nunca, nunca. Quem sair voando em linha reta por essa imensidade não volta jamais ao mesmo ponto. Fica a voar eternamente.

Emília interrompeu-o:

— Achei um jeito de resolver o caso de saber que astro é este. Basta fazermos uma votação. Se a maioria votar que isto é a Lua, fica sendo a Lua. É assim que os homens lá na Terra decidem a escolha dos presidentes: pela contagem dos narizes.

Não havendo outro meio de saírem daquela incerteza, fize­ram a votação. Pedrinho foi tomando os votos.

— Você, Narizinho?

— Lua!

— E você, Emília?

— Luíssima!

— Eu, Pedrinho, também Lua. E você, Tia Nastácia?

A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu:

— Para mim, nós estamos na Terra mesmo; e tudo que está acontecendo não passa de um sonho de fadas.

— Três narizes a favor da Lua e um a favor da Terra! — gritou Pedrinho. — A Lua ganhou. Estamos na Lua. Viva a Lua!…

A negra sentiu um calafrio. Se a maioria tinha decidido que estavam na Lua, então estavam mesmo na Lua. E isso de estar na Lua parecia-lhe um enorme perigo. A única coisa que Tia Nastácia sabia da Lua era que lá morava São Jorge a cavalo, sempre ocupado em espetar na sua lança o dragão. Com São Jorge, que era um santo, ela poderia arranjar-se. Mas que fazer com o dragão? E a pobre negra pôs-se a tremer.

— Meu Deus! — suspirou ela. — Tudo é possível neste mundo…

— Como sabe? — perguntou Emília espevitadamente. — Se você nunca esteve neste mundo, como sabe que nele tudo é possível?

— Quando eu digo este mundo, falo do meu mundo, do mundo onde nasci e sempre morei — explicou a preta.

— Bom. Se você se refere ao mundo em que nasceu e sempre morou, deve dizer naquele mundo, porque este mundo é a Lua, e neste mundo da Lua não sabemos se tudo é possível.

Enquanto Emília argumentava com a preta, Pedrinho afastou-se para examinar a paisagem. Sim, tudo exatamente como Dona Benta dissera. Aparentemente, nada de água e, portanto, nada de vegetação e vida animal como na Terra. Sem água não há vida. Todas as vidas são filhas da água. E o número de crateras não tinha fim.

Pedrinho ia levando o burro pelo cabresto e com ele tro­cava impressões.

— Se não há água neste astro, então também não há capim — dizia o pobre animal. — Não haver capim!… Que absurdo! O capim é o maior encanto da natureza. É uma coisa que me comove mais que um poema.

— E qual é a sua opinião, burro, sobre a formação da Lua? Há várias hipóteses.

— Sim. Uns sábios acham que a Lua foi um pedaço da Terra que se desprendeu no tempo em que a Terra ainda estava incandescente. Outros acham que o planeta Saturno foi vítima duma tremenda explosão causada pelo choque dum astro erran­te. Fragmentos de Saturno ficaram soltos no céu, atraídos por este ou aquele astro. Um dos fragmentos foi atraído pela Terra e ficou a girar em seu redor.

— E sabe que tamanho tem a Lua?

— O volume da Lua é 49 vezes menor que o da Terra. A superfície é treze vezes menor. A superfície da Lua é de 38 milhões de quilômetros quadrados — mais que as superfí­cies da Rússia, dos Estados Unidos e do Brasil somadas.

Pedrinho admirou-se da ciência do burro. Não havia lido astronomia nenhuma e estava mais afiado que ele, que era um Flammarionzinho… Mas não querendo ficar atrás, disse:

— Pois eu também sei uma coisa da Lua que quero ver se é certa. O peso de tudo aqui é mais de seis vezes menor que lá na Terra. Um quilo lá da Terra pesa aqui 154 gramas. Eu, por exemplo, que lá em casa peso 46 quilos, aqui devo pesar 7 quilos!… É pena não termos uma balança para verificar isso.

— Há um jeito — lembrou o burro. — Dê um pulo e veja se pula seis vezes mais longe que lá no sítio.

Pedrinho achou excelente a ideia. Os melhores pulos que ele havia dado no sítio foram: pulo de altura, 1 metro e 20; e de distância, 5 metros. Se ali na Lua ele pulasse seis vezes e pouco mais longe que no sítio, então estavam certos os cálculos dos astrônomos.

Pedrinho amarrou o burro numa ponta de pedra, marcou um lugar no chão, deu uma carreira e pulou — e foi parar exa­tamente a 33 metros de distância, mais de seis vezes o seu pulo recorde lá no sítio! E no pulo de altura alcançou mais de 8 me­tros. Um assombro!…

Depois de feitas as medições, Pedrinho ficou radiante.

— É verdade, sim! — gritou ele. — Aqui na Lua eu pulo melhor que qualquer gafanhoto da Terra — e começou a brin­car de pular. Deu vinte pulos de altura; e depois em cinco pulos chegou ao ponto onde estavam os outros — uma distância total de 165 metros.

— Que é isso, Pedrinho? — exclamou a menina. — Virou pulga?

— Aqui toda gente vira pulga — respondeu ele. — Ex­perimente pular. Veja que gostosura.

Narizinho pulou e viu que estava levíssima. Emília tam­bém pulou como um grilo. E ainda estavam entretidos naquele pula-puía, quando Tia Nastácia apareceu, muito aflita, com a pacuera batendo.

— Um bufo! — exclamou a pobre preta, toda sem fôlego. — Ouvi um bufo! Há de ser do dragão…

Pedrinho riu-se.

— Dragão nada, boba. Isso de dragão é lenda. Como po­deria um dragão vir da Terra até aqui, se na Terra não há dragões? Tudo é fábula. E se acaso pudesse um dragão vir da Terra até aqui, como viver num astro que não tem água nem vegetação? Isso de dragão na Lua não passa de caraminhola de negra velha…

Apesar dessas palavras, novo bufo soou. Todos voltaram-se na direção do som e com o maior dos assombros viram sair de dentro duma das crateras a monstruosa cabeça do dragão de São Jorge.

— Lá está o malvado! — berrou Emília. — Enxergou o burro e vem comê-lo.

Tia Nastácia ia dando um berro de pavor, que Narizinho teve tempo de evitar tapando-lhe a boca. “Louca! Se você grita, ele ouve e vem devorar-nos. Por enquanto só viu o burro. Te­mos de esconder-nos numa das crateras.”

O dragão ia lentamente saindo de sua toca. Breve puderam vê-lo todo de fora — um comprido corpo de lagarto recoberto de escamas verdes e com uma enorme cauda de serra com ponta de flecha no fim. Tal qual Emília o descrevera ao telescópio. A língua também, muito vermelha, terminava em ponta de flecha.

Todos se encolheram dentro dum buraco próximo e ficaram a espiar por uma rachadura da pedra. Falavam aos cochichos.

— Ele está na Lua há séculos — sussurrou Pedrinho — e há séculos que não come coisa nenhuma. Agora viu o burro. Sua fome despertou. Olhem como está lambendo os beiços com aquela língua de flecha…

— Mas não podemos deixar que coma o nosso burro — murmurou Narizinho. — Vovó ficaria danada. Temos de salvá-lo…

— Como?

— Indo procurar São Jorge. Se existe o dragão, há de existir também São Jorge.

— Sim, mas onde morará ele? Nalguma cratera também?

O dragão aproximava-se cada vez mais, embora muito lentamente. Parece que com os séculos de imobilidade passados ali seus músculos tinham enferrujado.

— E o burro está amarrado pelo cabresto a uma ponta de pedra. Não pode fugir! Que estupidez a minha, amarrar um burro daqueles…

— Pois é desamarrá-lo — sussurrou Emília. — Não vejo outro jeito.

— E quem vai fazer isso?

— Eu, que sou de pano — e sem mais discussão Emília saiu do buraco e correu na direção do burro, o qual já estava dando visíveis sinais de terror.

O que valeu foi o emperramento dos músculos do dragão. Vinha vindo como fita em câmera lenta. Emília num instante alcançou a ponta de pedra, desfez o nó do cabresto e gritou para o burro: “Fuja, senão está perdido para sempre! Esse dragão há séculos que não come coisa nenhuma”.

Com grande surpresa, porém, Emília viu que o pobre burro, paralisado pelo terror, não se mexia do lugar.

— Vamos! — gritava ela. — Mova-se! Raciocine e fuja…

E o burro imóvel, paralisado de movimentos, não conse­guia nem raciocinar, quanto mais fugir!

O dragão vinha vindo, vinha vindo, balançando a língua de ponta de flecha para a direita e para a esquerda. Mais uns segundos e chegava — e adeus, Burro Falante!…

Na sua aflição Emília teve uma grande ideia. Correu a buscar com Pedrinho uma pitada de pó — e de volta assoprou-o nas ventas do pobre burro paralisado. Isso exatinho no mo­mento em que a ponta da língua do dragão já se armava para fisgar. Ouviu-se um fiunnn e o burro lá se foi pelos espa­ços, que nem um cometa.

Vendo-se logrado, o dragão desferiu um urro medonho, ao mesmo tempo que jatos de fogo espirraram de seus olhos.

Nem de propósito. São Jorge, que estava cochilando longe dali, ouviu o estranho urro, pulou no cavalo e veio de galope.

Assim que o viu chegar, o dragão baixou a cabeça com grande humildade e foi tratando de recolher-se à sua cratera.

— Já, já para a toca, seu malandro! — gritou São Jorge sacudindo no ar a lança.

Depois, vendo por ali aquela boneca, abriu a boca, espantadíssimo.

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