Monteiro Lobato – Viagem ao Céu

Viagem ao Céu

 Capítulos 16, 17 e 18

 

16 – Aparece o burro

Quanto tempo estiveram desmaiadas lá em cima do cometa grande? Ninguém sabe. Só se sabe que em certo momento Narizinho estremeceu e foi lentamente abrindo um olho. Depois abriu o outro. Depois arregalou os dois — e viu pendurado sobre o seu rosto um focinho com duas ventas pretas. Apesar da tonteira em que ainda estava, reconheceu naquilo uma cara de burro. E súbito um clarão lhe iluminou o cérebro. O Burro Falante! Aquelas ventas, aquele focinho, aquelas pontas de orelhas só podiam ser do Burro Falante, porque o Burro Falante é que havia rolado pelo éter e na opinião de Pedrinho devia andar enganchado nalguma cauda de cometa.

O animal permanecia imóvel, de cabeça pendida. Com certeza estava naquela posição já de muito tempo, à espera de que a menina acordasse — e de tanto esperar dormiu também. Sim. O Burro Falante estava dormindo!

— Emília! — gritou Narizinho sacudindo a boneca desmaiada. — Acorde! Parece que estamos salvas e com o Burro Falante aqui às nossas ordens.

A boneca arregalou os olhos e esfregou-os.

— Burro Falante? — murmurou ainda tontinha, e só então seus olhos deram com o animal adormecido. Emília levantou-se e deu a mão a Narizinho já de pé. Ficaram as duas a olhar para o pobre burro de cabeça caída, imerso em sono profundo.

— Vou acordá-lo — disse Emília, e fazendo “Hu!” acordou-o. O aspecto tristonho do burro mudou para um ar de riso — um ar só, porque os burros não sabem rir, não podem nem sorrir, os coitados. O Burro Falante fez um ar de riso e falou na sua voz antiga de bicho do tempo dos animais falantes.

— Bofé! Até que enfim apareceram. Eu já estava cansado de esperar, e de tanto esperar dormi. Onde ficou o dragão? — e ao falar no dragão tremeu sem querer, com medo de que o monstro tivesse vindo atrás delas.

— Não tenha receio de nada, Senhor Burro — respondeu Emília. — O dragão está lá numa cova da Lua, amarrado na corrente.

O tremor do burro cessou.

— E a Senhora Anastácia?

Ele era a única pessoa no mundo que dizia “Senhora Anastácia”, em vez de “Tia Nastácia”, como os outros. Nunca houve burro mais bem-educado nem mais respeitador da gramática. Falava como se escreve, com a maior perfeição, sem um errinho. E falava num português já fora da moda, com expressões que ninguém usa mais, como aquele “Bofé!”

— Tia Nastácia ficou na Lua como cozinheira de São Jorge — respondeu a menina — e a estas horas ou está fritando bolinhos ou está fazendo pelo-sinais e dizendo credos.

— E o Senhor Pedro Encerrabodes?

O burro nunca disse Pedrinho; era sempre Encerrabodes.

— O Senhor Pedro sumiu! — gritou a boneca. — Vinha guiando pelos ares o Potro dos Céus, comigo na garupa, quando se pôs a explicar como é que os gregos tangiam a lira (não lira italiana, mas a tal lira que era a viola deles) e tantos gestos fez no ar que perdeu o equilíbrio e caiu no éter.

O burro empalideceu.

— Oh, isso é muito grave! — murmurou em seguida, franzindo a testa e erguendo as orelhas. — O Senhor Pedro Encerrabodes sempre foi o nosso guia. Sem o seu adjutório (ele não dizia ajutório) não sei como nos avirmos nestas terras desconhecidas. Estou aqui há horas (ou há séculos, não posso saber). Já galopei milhares de toesas por esses luminosos campos infinitos, sem encontrar sequer uma pequena touça de capim.

— E está com fome, Senhor Burro? — perguntou Emília.

— Nada mais natural, Senhora Marquesa.

— Pois se quer servir-se de estrelinhas recém-nascidas, tenho muitas aqui no bolso. É o que há…

O Burro Falante respondeu com toda a gramática:

— Não creio, Senhora Marquesa, que meu estômago aceite de bom grado semelhante iguaria. Antes continuar jejuando do que contrariar as leis da natureza com a ingestão dum alimento que nem eu nem meus antepassados jamais provamos.

— Faz muito bem — disse Narizinho. — Quem vai comendo a torto e a direito tudo o que encontra acaba estourando. Vovó sempre diz que o “animal se faz pela boca”, isto é: nós somos o que comemos. Um burro que se alimentar de estrelas é capaz de virar cometa.

O burro quis saber o que havia acontecido desde o momento em que Pedrinho lhe assoprou o pó de pirlimpimpim nas ventas. A menina sentou-se e foi contando. Enquanto isso a boneca pôs-se a passear por ali em procura de coisinhas pelo chão, como costumava fazer nas praias. Por causa desse hábito vivia encontrando coisas. Emília pôs-se a andar, e foi andando, e afastou-se para longe.

Em dado momento, quando Narizinho, depois de contar a chegada à Via-láctea, ia entrando na história do cometa-potro-xucro, uma voz distante chegou-lhe aos ouvidos: “Corra, Narizinho! Venha ver uma coisa do outro mundo…”

A menina ergueu-se e correu na direção da voz, até que avistou Emília sentada no chão com qualquer coisa ao colo. De longe não pôde distinguir o que era — pareceu-lhe uma criancinha nova. Mas seria absurdo admitir uma criança nova naquelas alturas.

Narizinho foi se aproximando. Chegou bem perto. Arregalou os olhos e esfregou-os, porque lhe custava acreditar no que seus olhos viam.

— Um anjinho, Emília? … — exclamou afinal no maior dos espantos. — Onde descobriu semelhante maravilha? — e acocorou-se diante do anjinho lindo que a boneca tinha ao colo.

Era um anjinho mesmo! O mais lindo anjinho dos céus, a maior das galantezas. O rosto parecia feito de pétalas de rosa. Os cabelos em cachos pareciam feitos de fios de luz.

— Achei-o caído por aqui —: respondeu a boneca com os olhos irradiantes de gosto. — Deve ser um pobre anjinho que rolou dalguma nuvem e quebrou a asa. Está desmaiado. Olhe que galanteza! Louro que nem macela, de asas alvas como paina…

A menina ajoelhou-se ao lado da boneca e caiu em contemplação da maravilha. Que encanto de criaturinha! Teve vontade de comê-lo, como quem come um doce cristalizado.

Seu encantamento crescia. Ela olhava, olhava e não cessava de olhar. Depois bateu palmas. Ergueu-se e começou a dar pulos de contentamento.

— Corra! — gritou para o Burro Falante. — Venha ver o assombro dos assombros — um anjinho de asa quebrada…

E para a boneca:

— Imagine, Emília, nós lá no sítio com um ente destes pra brincar! Tia Nastácia sabe quanto remédio existe; há de saber também um bom para asa quebrada — e ele sara e vai voar para nós vermos. Vovó, coitada, juro que desta vez derruba o queixo, quando nos vir chegar com esta galanteza…

Passados alguns instantes o anjinho deu o primeiro sinal de vida, enquanto a menina lhe fazia esfregação pelo corpo. Seus olhos foram se abrindo. Eram azuis como o céu azul. Por fim falou na vozinha mais límpida e sonora.

— Onde estou eu? — foram suas primeiras palavras.

— No meu colo! — respondeu Emília cheíssima de si.

O anjinho olhou para ela sem nada compreender. Nunca tinha visto boneca, e não podia fazer a menor idéia de quem Emília fosse.

— E quem é a senhora? — perguntou em débil voz.

— Eu sou a antiga Marquesa de Rabicó — respondeu Emília toda ganjenta — e agora vou ser a sua mãezinha querida. Esta meninota aqui ao lado é a neta de Dona Benta, Narizinho. E aquele senhor de quatro pés é o único burro falante que existe lá na Terra. Nós o salvamos das garras dum leão terrível numa das nossas aventuras do pirlimpimpim, e o levamos para o sítio. Não tenha medo dele, não, bobinho. É muitíssimo bem-educado, incapaz de dar um coice numa mosca. Nossa história é essa. Agora conte-nos a sua.

Depois de olhar muito assustado para a menina e o burro, o anjinho falou. Explicou que andava de passeio pelo éter quando ouviu um tremendo estrondo (o choque dos dois cometas). O seu susto foi enorme, porque jamais tinha ouvido um trovão assim. O estrondo fê-lo perder o equilíbrio do vôo e cair desmaiado. Na queda havia batido em qualquer coisa dura no espaço e estava agora sentindo uma dor na asa esquerda.

— Que engraçado! — exclamou Emília. — O mesmo nos aconteceu, com a diferença que não nos machucamos e não quebramos a asa. Às vezes é bom não ter asas.

Só então o anjinho percebeu que tinha a asa esquerda quebrada. Quis erguê-la, como erguia a direita, e não pôde. Isso fez que ele se pusesse a chorar um chorinho muito sentido.

— Que vai ser de mim? — murmurou soluçando. — Com uma asa só não posso voltar para minha nuvem, lá onde moram meus irmãos celestes…

— Melhor! — disse Emília. — Irá morar conosco lá no sítio de Dona Benta, que é o lugar mais bonito dos mundos. Temos uma porção de árvores no pomar, e um rio cheio de peixes, e a Vaca Mocha, e os bolinhos de Tia Nastácia. E eu tenho uma canastrinha que até dou para você.

O anjinho nunca tinha visto árvore, nem rio, nem vaca, nem bolos, de modo que nada entendeu de tudo aquilo. Começou a fazer perguntas e mais perguntas, que ora Emília respondia, ora Narizinho. O que mais lhe interessou foi a Vaca Mocha, cuja descrição, feita pela boneca, era mesmo de despertar a curiosidade de todos os anjos do céu.

— Mas esse estranho animal não come gente? — perguntou ele muito admirado.

— Só come capim e palha — respondeu Emília. — E também abóbora, batata, milho e outras coisas assim.

— Capim? Que é capim? — indagou a galanteza com uma ruga de interrogação na testa.

Emília olhou para Narizinho e sorriu. Depois respondeu:

— Não vale a pena explicar. Essas coisas lá da Terra são facílimas de ser compreendidas, vendo. Assim de longe, só explicadas e sem amostras, não podem ser entendidas. Lá na Terra mostrarei o que é capim, o que é milho, o que é flor, o que é árvore, o que é tudo. Não tenha pressa.

— E lá nesse sítio a gente pode voar? — perguntou ele. — Eu gosto muito de voar.

— Pode, como não? — respondeu Emília. — Os patos de lá voam, os gaviões, os marrecos e até as galinhas-d’angola. Os passarinhos todos voam. O tempo voa. As borboletas, as abelhas, as içás — tudo voa que é uma beleza!…

— São anjos também, esses patos, gaviões e galinhas-d’angola?

Emília não pôde conter uma gargalhada gostosa — e voltando-se para Narizinho disse na “linguagem do P”, para que o anjo não percebesse: “Épé mapaispis bupurripinhopo dopo quepe opo Primpimcipipepe Espescapamapadopo”. (É mais burrinho do que o Príncipe Escamado.) E depois, para o anjinho:

— Não são anjos, não, meu amor. Os anjos que há lá são só os de procissão, isto é, crianças com asas de pato nas costas. Fingimento. E há também os “anjinhos” defuntos. As crianças que morrem viram “anjinhos” — mas em vez de voar, vão para os cemitérios em caixões cheios de flores. Anjo de verdade, dos “legímacos”, você vai ser o primeiro.

Outra vez o tal “legímaco”!

— E nunca mais poderei voltar para o céu com os meus irmãos? — perguntou o anjinho depois de refletir uns instantes.

— Poderá, sim, mas duvido que volte. É tão interessante a Terra, toda cheia de homens e mulheres e bichos e plantas, que anjo que cai lá nunca mais pensa em sair.

Nisto Emília bateu na testa e disse: “Não é que me ia esquecendo!” — e tirou do bolso do avental o célebre embrulhinho em papel de seda que lá guardara no dia da partida — o misterioso embrulhinho que não quis explicar a ninguém o que era. Enquanto a boneca desfazia o embrulho, a menina espichou o pescoço para ver do que se tratava. Uma bala puxa-puxa!

— Tome este presente que eu trouxe da Terra para você — disse Emília oferecendo a bala ao anjinho. — Desconfiei que ia encontrar por aqui alguém que merecesse uma bala e por prevenção vim com esta no bolso. Tome.

O anjinho tomou a bala com ar de quem nunca tinha visto semelhante coisa. Examinou-a por algum tempo; depois olhou para a boneca e para a menina como que pedindo mais explicações.

— É sua, bobinho! — disse Emília. — Ponha na boca e prove. Não tenha medo.

O anjinho obedeceu. Pôs a bala na boca e sem demora fez cara de estar gostando.

— É bom, sim! — disse ele. — Há muitas coisas gostosas como esta lá no sítio?

— Montes! — respondeu Emília. — Tia Nastácia faz desses doces (isso chama-se “doce”, decore) em quantidade, e de todas as cores e gostos. Há um amarelo, chamado “doce de abóbora”, que é muito bom. Há um roxo chamado “doce de batata”. Há as “cocadas”, que são branquinhas como a neve. Também há cocadas cor-de-rosa, com as quais eu me implico. Gosto só das brancas. Lá em casa você vai ter tudo isto até enjoar e ficar com dor de barriga e lombrigas. Ah, a nossa vida no sítio é uma beleza de suco…

Tão entretidas ficaram as duas na conversa com o anjinho, que se esqueceram de lamentar a sorte do “Senhor Pedro Encerrabodes”, perdido na imensidão do éter. Felizmente Pedrinho não se esquecera delas e, de repente, apontou ao longe.

— Olhem Pedrinho! — berrou Emília que foi a primeira a vê-lo. — Lá está ele, mais serelepe do que nunca…

Que alegria! Nunca a chegada dum personagem foi recebida com tantas demonstrações de contentamento.

— Pedrinho! Pedrinho!… Conte, conte tudo que aconteceu depois do tombo da lira.

— Nada de importante — respondeu o menino. — Também caí neste cometa, como vocês. Caí e perdi os sentidos, ficando desacordado até agora. Afinal voltei a mim. Olhei em redor: só vi este infinito campo luminoso, que logo adivinhei ser a cauda do cometa de Halley.

— Como sabe que é o cometa de Halley? — duvidou a menina, um tanto desconfiada de tanta ciência.

— Pelo jeito — respondeu Pedrinho — e tratou de mudar de assunto. — Logo que voltei a mim olhei para todos os lados. Não vi coisa nenhuma senão esta poeira luminosa. Pus-me a andar, sempre na mesma direção, com esperança de descobrir qualquer coisa. Tive sorte. Vim ter exatamente ao ponto onde vocês estavam. A primeira pessoa que avistei de longe foi o Burro Falante, coitado. Mas… — e Pedrinho interrompeu a narrativa, só então percebendo aquela criança no colo de Emília. — Que é isso? Parece um anjinho…

— E é de fato um anjo — respondeu a menina. — Um anjinho dos legítimos, que Emília achou por aqui. De asa quebrada — tombou lá das nuvens. Na queda bateu em qualquer coisa dura pelo caminho. Vai morar conosco no sítio. Imagine que lindeza…

Em vez de responder, Pedrinho pôs-se a dar pulos de contentamento. Ter um anjo no sítio era coisa que jamais havia passado pela sua imaginação.

— Que beleza, Narizinho! — exclamou ele depois de sossegar. — Até Peter Pan vai roer-se de inveja. Um anjinho de verdade na Terra é coisa que nunca houve desde que a Terra é Terra.

O Burro Falante, com as orelhas caídas e os olhos úmidos, contemplava enternecidamente aquele maravilhoso quadro.

 

17 – Saturno

Por mais agradável que fosse ficarem boiando naquela cauda de cometa, entretidos em conversar com o maravilhoso anjinho, era preciso pensar na viagem.

— A fome está chegando — disse Pedrinho. — Temos de concluir a nossa viagem celeste e voltar para casa à hora da ceia. Podemos ficar por aqui ainda algum tempo — mas não sei para onde ir agora. É tão grande o universo que até enjoa…

— Que tal uma chegadinha ao planeta Vênus? — lembrou a menina. — É o mais simpático de todos.

— Também acho — concordou Pedrinho — mas Vênus é como uma irmã gêmea da Terra. Assemelham-se em quase tudo, no tamanho, nas estações — só que Vênus está muito mais perto do Sol e, portanto, deve ser muito mais quente. Vênus está a 108 milhões de quilômetros do Sol. Está, portanto, 42 milhões de quilômetros mais perto do terrível fogareiro do que a Terra.

— E se formos ao planeta Mercúrio?

— Nem pense nisso, Narizinho! O tal Mercúrio, além de ser o planeta menor de todos, está a apenas 58 milhões de quilômetros do Sol. O calor de Mercúrio deve ser de derreter pedras. Ir a Júpiter, sim, vale a pena. Júpiter é o rei dos planetas — colossal! Gira a 780 milhões de quilômetros do Sol, tem quatro luas formidáveis e um ano igual a onze anos e tanto dos nossos. Júpiter é enorme. Tem 1.390 vezes o volume da Terra!

— E os outros planetas?

— Há o tal Saturno, com dez luas, a 1.400 milhões de quilômetros do Sol e de volume oitocentas vezes o da Terra.

— E que comprimento tem o ano em Saturno?

— Vinte e nove anos dos nossos. O ano de Saturno até desanima a gente. Você lá seria uma criancinha de pouco mais de quatro meses…

— E os outros?

— Há ainda o tal Urano e o tal Netuno. Urano gira longíssimo do Sol a 2.872 milhões de quilômetros, veja que colosso! Tem um ano horrivelmente longo, igual a 84 anos da Terra. Vovó lá estaria apenas com dez meses de idade. E o tal Netuno, então? Esse fica no fim do nosso sistema planetário, quase nas fronteiras. É o antepenúltimo. O último é Plutão.

— A que distância do Sol?

— A 4.500 milhões de quilômetros… E tem um ano que não acaba mais. Imagine que o ano de Netuno corresponde a 165 anos dos nossos lá da Terra…

— Quer dizer que se vovó nascesse em Netuno estaria com cinco meses de idade — mamando ainda, coitadinha… e o tamanho?

— Netuno tem 78 vezes o volume da Terra.

— E os outros planetas, aqueles planetóides de que vovó falou?

— Ah, esses não contam. Existem em número incalculável. São quireras de planetas. São guaruzinhos das águas do céu. Para ser planeta verdadeiro é preciso ter o tamanho de lambari para cima. Guaru não conta.

— E o tal que usa anéis? — quis saber Emília.

— Esse é o planeta Saturno. Está aí uma ideia! Podemos ir a Saturno ver como são os seus anéis…

Todos aprovaram. Uma visita a Saturno era da mais absoluta novidade. Criatura nenhuma da Terra jamais pensara nisso. Se eles dessem um passeio pelo planeta Saturno haviam de ficar imortais — a maçada é que quando lá na Terra contassem a proeza nenhum adulto acreditaria…

Ficou assentado irem para Saturno, mas antes disso Narizinho pediu que o pequeno Flammarion contasse tudo quanto Dona Benta lhe havia dito sobre o maravilhoso planeta dos anéis.

— Esse planeta — disse Pedrinho com a maior importância — está a 1.400 milhões de quilômetros do Sol…

— Espere! — interrompeu Narizinho. — Antes de mais nada eu quero saber uma coisa. Como é que os homens descobriram que tais e tais astros são estrelas, e tais e tais outros são planetas? Numa noite estrelada a gente olha para o céu e vê tudo igual — as estrelas e os planetas. Tudo são pontinhos luminosos e mais nada. Responda a isso, se é capaz.

Pedrinho deu uma risada gostosa.

— Nada mais fácil, menina. A mesma pergunta fiz a vovó e ela respondeu imediatamente. Aquela vovó é uma danada! Não há o que não saiba.

— Então explique.

— O caso é simples. Desde os começos da humanidade os homens viam à noite o céu cheio de estrelas, mas de tanto olhar para o céu foram percebendo uma coisa: que certos astros apareciam sempre no mesmo ponto e outros variavam.

— Como sabiam que eles variavam de lugar?

— Muito simples. Eles viam que em certa noite esses astros estavam perto de certas constelações; na noite seguinte estavam um pouquinho mais adiante, e mais adiante na terceira noite, etc. Viam perfeitamente que esses astros eram móveis, isto é, caminhavam em certas direções. E também observaram que depois de certo tempo eles voltavam. E assim passavam a vida, indo e vindo, indo e vindo — ao passo que as estrelas permaneciam fixas, sempre firmes no mesmo ponto. Depois notaram que esses astros móveis caminhavam numa direção durante um certo número de meses e voltavam em igual tempo. Um ia e vinha em sete meses e meio — era Vênus. Outro ia e vinha em um ano e 332 dias — era Marte. Outro ia e vinha em onze anos e 314 dias — era Júpiter, e assim por diante. Entendeu?

— Entendi — declarou Narizinho — e era verdade, pois havia entendido mesmo. Pedrinho continuou:

— Mas não pense que as estrelas são realmente fixas. Elas também andam girando pelo espaço. Mas como estão longíssimas, parecem fixas.

E voltando a Saturno:

— Quando vovó começa a falar desse planeta até fica que nem a Emília. Diz que é o maior do céu, uma beleza que nem em sonhos podemos imaginar. É um planeta bem grande, oitocentas vezes o volume da Terra e com dez luas.

— Dez? — admirou-se a menina.

— Dez, sim, e três delas mais próximas do que a nossa Lua o é da Terra. E eu tenho aqui em meu caderninho o nome das dez luas saturninas. Saturnino quer dizer de Saturno.

— Não precisava explicar. Quem não adivinha semelhante coisa?

Pedrinho tirou do bolso o caderno de notas e leu o nome das luas de Saturno.

— Mimas, Encelado, Tétis, Dione, Réia, Titã, Têmis, Hiperion, Jápeto e Febo.

— Então Mimas, Encelado e Tétis são as “pertinhas”! — adivinhou Emília, que estava com o anjo adormecido no colo.

— Sim. São as que ficam mais próximas de Saturno do que a Lua o é da Terra — confirmou Pedrinho. — Que beleza não deve ser, hein? Uma lua no céu da noite já é tão bonito, imaginem dez!… Os habitantes de Saturno devem viver enjoados de luas. E como se isso fosse pouco, ainda tem no céu, permanentemente, a maravilha das maravilhas que são os anéis.

— Conte o que vovó disse dos anéis — pediu a menina.

— Ah, vovó explicou tudo muito bem. Como ela sabe! Esses anéis são três, ou um só dividido em três faixas distintas, sempre iluminadíssimas pela luz do Sol. Eu até fico tonto ao imaginar a beleza que devem ser!

— E que tamanho têm os anéis?

— A palavra anel atrapalha a gente — disse Pedrinho. — O melhor é dizer “disco”, porque aquilo é na realidade um disco de milhões de fragmentos de astros a girarem em redor do planeta. E para você ter idéia do tamanho, é preciso primeiro que saiba duma coisa: que o diâmetro de Saturno tem 120.000 quilômetros. Muito maior que o da Terra. Pois bem: a largura do disco de Saturno tem 64.000 quilômetros…

— E a grossura?

— É de apenas 60 quilômetros.

— Só? — admirou-se a menina. — Então, então, então…

— Eu sei o que você quer dizer, Narizinho. Você quer dizer que o disco é da finura duma folha de papelão para a folha inteira do papelão, não é isso? Pois está muito enganada. Suponha um disco de papelão de 1 metro de diâmetro por 1 milímetro de espessura. Pois nessa proporção, sabe qual seria a espessura do disco de Saturno? Seria de 426 quilômetros — vovó já fez a conta. Mas a espessura do disco de Saturno é só de 60 quilômetros. Logo, o disco é proporcionalmente muito mais fino que o papelão.

— Da finura dum papel de seda para uma folha inteira de papel de seda?

— Exatamente. O diâmetro do disco de Saturno está para a sua espessura como o tamanho duma folha de papel de seda está para a finura do papel de seda. Compreendeu?

— Isso até o anjinho compreenderia — berrou a boneca — se estivesse acordado e soubesse o que é papel de seda — e pôs-se a alisar os lindos cabelos da criaturinha adormecida em seu colo.

O pequeno Flammarion continuou a expor o que sabia de Saturno.

— O mais interessante que vovó me contou — disse ele — foi o que os sábios imaginam da vida em Saturno. Tudo é diferentíssimo de lá da Terra.

— Por quê?

— Porque as condições de Saturno são diferentes. O ano de Saturno é enormíssimo (ano você sabe o que é: o tempo que um planeta gasta para dar uma volta em redor do Sol). O ano de Saturno tem 29 anos dos nossos lá da Terra! E os dias são de apenas dez horas. Dia você sabe o que é…

— Sei. Os planetas giram em redor do Sol e também giram em redor de si mesmos. Quando giram em redor de si mesmos, há sempre uma parte que fica dando para o Sol e outra que fica no escuro. Temos aí o dia e a noite. Certo?

— Exatinho. Você está ficando tão boa quanto eu na ciência da astronomia…

— Gabola!… Mas continue. Como são os habitantes de Saturno?

-— Ninguém sabe ao certo, mas os homens de ciência imaginam. Acham que devem ser umas criaturas tão diferentes de nós que nem podemos compreendê-las. Uns seres gelatinosos, transparentes, adiantadíssimos, com órgãos diferentes. Devem alimentar-se de fluidos e não de coisas líquidas ou sólidas, como nós. E terão muitos mais órgãos dos sentidos do que nós. Nós não passamos de uns coitadinhos. Só temos cinco sentidos. Cinco, imagine que pobreza! Eles lá devem ter dez, vinte, cem… Para saber as coisas, nós precisamos estudar. Eles vibram no ar o “órgão da ciência” e já ficam sabendo.

Emília meteu o bedelho.

— Isso quer dizer que os saturninos ainda têm mais crocotós que os marcianos.

— Não creio — duvidou Pedrinho. — Crocotó dá idéia de coisa dura e eles são gelatinosos.

— Há também crocotó do mole — resolveu Emília.

— Pois então — continuou Pedrinho — o que pode acontecer é o seguinte: quando eles querem “sentir” qualquer coisa, espicham lá de dentro da gelatina um crocotó do mole, e esse órgão “detecta” o que é preciso. Se um saturnino, por exemplo, quer saber que horas são, espicha para fora o “crocotó do tempo” e detecta a hora no ar… E se quer saber se a Terra é habitada, espicha para fora o “crocotó da distância…”

— O telecrocotó! — lembrou Emília.

— …e vê tudo lá na Terra como se estivesse pertinho.

Emília assustou-se.

— Então já me viram aqui com o anjinho e são capazes de qualquer coisa — e cobriu o anjinho com o avental.

— Será possível que eles espiem tudo quanto fazemos lá no sítio? — imaginou a menina. — Ah, meu Deus! Não existe sossego neste universo. A gente pensa que faz coisas escondidas — e esses diabos de Saturno estão vendo! Imaginem como não se divertem com essas espiações por meio do “crocotó da distância…”

— Os outros astros devem ser o cinema lá deles — sugeriu Pedrinho. — Eu, por mim, já estou cansado da Terra. Queria ser saturnino. Delícia maior não há. O dia inteiro com o cinema do universo diante de nós! O dia inteiro a espiarmos as reinações de todos os seres que existem…

 

18 – No planeta maravilhoso

Depois de muita imaginação resolveram partir para Saturno; mas antes disso consultaram o Burro Falante.

A gravidade daquele burro já vinha de muito tempo impressionando a boneca, de modo que ao ouvi-lo responder tão “sentenciosamente” (falar sentenciosamente quer dizer falar como aquele animal falava), Emília bateu na testa e disse:

— Heureca! Achei um nome para o Burro Falante: Conselheiro! … Tudo que ele diz parece um conselho de velho — e é sempre um conselho muito bom. Viva o Conselheiro!…

E a partir daquele momento o Burro Falante passou a chamar-se Conselheiro.

Resolvido aquele ponto, Pedrinho distribuiu as pitadas de pirlimpimpim e contou — um… dois… e três! O fiunnn foi tremendo — e os cinco viajantes (inclusive o anjinho) foram despertar bem em cima dos anéis de Saturno.

Que maravilha! Os tais anéis, ou discos, eram uma planície sem fim de luz, como o arco-íris — uma lisura luminosa que rodeava o imenso planeta. Pedrinho explicou que a força de atração de Saturno era em certo ponto neutralizada pela força de atração do disco, de modo que naquela zona os seres perdiam o peso — ficavam parados no ar, flutuando na maior das gostosuras. E eles estavam justamente nessa zona onde não havia peso! Começaram, pois, a flutuar, a flutuar…

— Parece um sonho! — dizia a menina. — Estou boiando como num mar de delícias. Oh, gosto dos gostos! Oh, fenômeno!…

E boiaram, boiaram, viraram-se em todas as posições, como se estivessem sobre um invisível colchão de paina solta. O Conselheiro, coitado, sentia-se atrapalhadíssimo, porque, como boiava como os demais, ora se via com as quatro patas para cima, ora para baixo, ora para os lados. Emília jogava o anjinho no ar e ele ficava boiando sem cair. Estiveram naquela zona um tempo enorme, brincando duma coisa que nenhuma criança da Terra nem sequer imagina — brincando de boiar num fluido luminoso e deliciosíssimo.

— É uma gostosura que até enjoa a gente — disse Pedrinho num momento em que estava de pernas para cima, segurando o Conselheiro pelo rabo. — Tudo sem peso! Só agora compreendo a estupidez que é o tal peso lá na Terra. A gente vai fazer qualquer coisa e cansa, por quê? Por causa do peso…

— Mas ter um pesinho é bom — disse a menina, já com saudades dos seus quarenta quilos. — Estou tão acostumada a ter peso que isto aqui me dá a idéia de que estou aleijada — de que está me faltando um pedaço. O peso é um verdadeiro pedaço da gente…

Pedrinho explicou que se conseguissem sair daquela zona chegariam a outra em que o peso volta.

— Então vamos para lá — propôs a menina.

E lá se foram, arrastando-se como puderam. Deu certo. Na segunda zona começaram a sentir um pouco de peso, e com isso a sensação tornou-se-lhes ainda mais agradável. Podiam andar como na Terra, mas com muito cuidado, porque o esforço exigido para cada passo era mínimo. Pareciam em câmara lenta. Tiveram de aprender a andar ali. No começo faziam força demais e com um passo iam parar longe. Por fim acertaram o jogo.

Súbito, Emília gritou:

— Estou vendo uma coisa que deve ser um saturnino — e apontou em certa direção.

Era verdade. Um ser esquisitíssimo vinha na direção deles, exatinho como Dona Benta dissera — todo gelatino e transparente; mas sem forma definida — ia mudando de forma segundo as necessidades. O mais assombroso, porém, foi que o estranho saturnino parou diante deles e falou do modo mais claro e natural possível. Falou, sabem como? Falou espichando lá de dentro da gelatina o “crocotó que falava” — um crocotó que parecia uma dessas águas-vivas que há no mar.

— Bem-vindos sejam aos nossos domínios — disse ele. — Temos acompanhado a viagem de vocês através dos espaços. Sabemos tudo. Ouvimos tudo que vocês, conversaram com São Jorge lá na Lua.

— Então daqui enxergam até a Lua, que é uma isca de satélite? — perguntou Pedrinho muito admirado.

— Sim, para nós não há distâncias. Temos sentidos que vocês não podem compreender. Acompanhamos a vida de todos os seres em todos os astros dos céus. Aqueles pobres telescópios dos astrônomos da Terra fazem-nos sorrir de piedade. São puras “cegueiras” em comparação dos nossos teleolhos.

— Eu bem disse! — gritou Emília. — Eu bem disse que eles tinham telecrocotós. São os tais teleolhos…

— Sim, são os nossos olhos de ver a qualquer distância por maior que seja. E o nosso principal divertimento é esse: ver, ver tudo quanto se passa no universo. Sabemos de toda a vidinha de vocês lá no sítio. Assistimos à morte do Visconde quando caiu no mar. Vimos o tiro com que o Barão de Munchausen cortou o cabresto do burro. Rimo-nos do susto de Dona Benta ao perceber que estivera sentada no dedo do Pássaro Roca, julgando que fosse raiz de árvore.

— Não viu também aquele murro que dei no olho do barão? — perguntou Pedrinho.

— Perfeitamente — e achamos muita graça na ideia.

O assombro dos meninos não tinha limites. A boneca pediu:

— Diga então o que Dona Benta está fazendo lá no sítio.

O saturnino virou o telecrocotó em certo rumo e respondeu:

— Está sentada na redinha da sala de jantar, chorando…

— Chorando? — repetiu a menina, admirada. — Por quê?

— Porque é uma avó muito boa e não sabe por onde andam os seus netos. Meu conselho é que voltem o quanto antes.

Pedrinho fez cara de choro.

— Voltar, justamente agora que encontramos o planeta dos nossos sonhos? Isso é doloroso…

— Concordo, mas vocês têm de admitir que é um crime deixarem uma tão boa criatura largada sozinha naquele planeta feio e triste. A Terra é um dos planetas mais atrasados e grosseiros do nosso sistema solar. Voltem. Tenham dó da velhinha. Um dia poderão dar novo pulo até aqui e trazê-la. Já sabem o jeito.

Os dois meninos concordaram, depois de um longo suspiro. Sim, tinham de voltar para aquele sem-gracismo da Terra, onde os homens não sabem fazer outra coisa senão matar-se uns aos outros.

— Não há dúvida — fungou Pedrinho. — Volto; depois venho cá de novo me naturalizar saturnino. Mas será possível semelhante coisa? Temos a nossa forma, temos só cinco sentidos e estes braços e estas pernas. Aqui em Saturno todas as coisas são diferentes…

— Isso não quer dizer nada. Nós enxertaremos em vocês todos os nossos crocotós, com licença ali da Senhorita Emília.

Aquela conversa com o saturnino foi o maior dos assombros. O que ele disse, o que contou do universo, o que falou a respeito de Sírio e outras estrelas famosas, tudo era da mais absoluta novidade — e um encanto! Os meninos não cessavam de fazer perguntas, que ele respondia com a maior clareza. Quando Pedrinho indagou do que comiam, a resposta foi:

— Nós nos alimentamos de fluidos aéreos. Lá na Terra vocês vivem indiretamente da luz do Sol. A luz do Sol cria as plantas e vocês não passam de praguinhas das plantas, de animais que vivem das folhas das plantas, das sementes das plantas, das raízes das plantas. E como a planta é uma criação da luz do Sol, vocês vivem da luz do Sol — mas indiretamente. Aqui é o contrário. Vivemos diretamente da luz do Sol. Nosso corpo embebe-se da luz solar e vive — e vive muito mais que vocês lá na Terra. Vivemos trinta vezes mais. Dona Benta, por exemplo, não viverá na Terra mais que oitenta ou noventa anos — anos lá de vocês. Aqui ela viveria trinta vezes isso — ou sejam 2.400 ou 2.700 anos…

— E não ficam doentes?

— Não há doenças em Saturno. Isso de doenças quer dizer “imperfeição adaptativa”. Vocês lá na Terra são seres ainda muito pouco evoluídos, seres bastante rudimentares. Não passam de “experiências biológicas”. Seres que ainda vivem de plantas são seres que ainda estão engatinhando na estrada larga da evolução.

Os meninos piscavam os olhos no esforço de entender o que o saturnino dizia.

— Bom, brinquem mais um pouco e voltem para a Terra. Dona Benta está dando suspiros cada vez maiores…

Disse e afastou-se gelatinosamente.

Assim que se viram sozinhos, os três tiveram uma ideia para a despedida: brincarem de patinar nos anéis de Saturno. Com o pouco peso que sentiam, a coisa seria facílima e deliciosa — e puseram-se a patinar, todos, até o anjinho. Todos, menos o Burro Falante. O pobre animal ficou de lado, vendo a linda brincadeira.

Numa das voltas que Emília estava dando aconteceu passar rentinho dele.

— Venha também! — gritou-lhe a boneca. — Aproveite!

O burro sentiu uma vontade imensa de aceitar o convite. Nunca havia brincado em toda a sua vida e a ocasião era ótima.

Não havia por perto “gente grande” para “reparar”. Mesmo assim se conteve. Ele era o Conselheiro, um personagem austero e grave. Precisava respeitar o título — e continuou imóvel onde estava, com as orelhas ainda mais murchas e o olhar ainda mais triste. Jamais brincara em criança — e também não brincaria naquele momento. Seu destino era passar a vida inteira sem regalar-se com as delícias do brincar. E o Conselheiro deu um suspiro arrancado do fundo do coração.

Os meninos por fim cansaram-se daquilo. Cansaram-se de patinar nos anéis de Saturno e pararam.

— Chega — disse Pedrinho. — Estou com remorso. A coitada da vovó chorando lá na rede. Isso é judiação.

E tratou de voltar à Terra. Antes, porém, tinham de portar na Lua para pegar Tia Nastácia.

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