Monteiro Lobato – Viagem ao céu

Viagem ao céu

 Capítulos 19, 20 e 21

 

19 – De novo na Lua

Terminado o fiunnn que os levou de Saturno à Lua, viram-se bem em cima duma cratera.

— Onde será que mora São Jorge? — disse Pedrinho sondando os horizontes. -— Só vejo crateras e mais crateras. Casa nenhuma. Nenhum castelo…

— O meio de descobrir onde ele mora é um só — sugeriu a menina. — Como é hora do lanche, Tia Nastácia deve estar no fogão. Procure uma fumaça. Onde houver fumaça, lá mora São Jorge.

Pedrinho achou boa a ideia e pôs-se a procurar a fumacinha. Todos fizeram o mesmo. Quem primeiro a descobriu foi o Conselheiro.

— Ou muito me engano — disse ele — ou aquele fio de “fumo” que aparece a sudoeste indica a residência do Senhor São Jorge.

Todos correram naquela direção. De longe já avistaram o santo sentadinho num rochedo, com a lança ao colo.

— Viva! Viva! — gritou-lhe a boneca, que seguia adiante dos outros puxando o anjinho pela mão. — Aqui estamos, São Jorge, com o nosso Conselheiro encontrado na cauda dum cometa e este anjinho que descobri na Via-láctea — e foi contando atropeladamente as principais peripécias da grande aventura.

São Jorge não se espantou de coisa nenhuma, porque já não se espantava de nada, tantas e tantas coisas maravilhosas havia visto. Só estranhou o passeio pela Via-láctea. Sua ideia sobre as nebulosas era a mesma dos astrônomos — que aquilo era um imenso aglomerado de estrelas em certas direções do céu. Mas deixou passar. Estava com preguiça de discutir.

— E Tia Nastácia? — perguntou Narizinho. — Como vai ela?

— Mal, coitada! — respondeu o santo. — Não se acostuma aqui. Continua tão boba como no primeiro dia. E não consegue dominar o medo que tem do dragão. Já lhe expliquei que o meu dragão é o que há de inofensivo, mas de nada adiantou. Cada vez que ele urra ela fica de pernas moles no fundo daquele buraco.

Narizinho foi correndo à cratera que o santo indicava. Encontrou a pobre negra fritando bolinhos, mas com o ar mais desconsolado desta vida. De seu peito brotavam suspiros de cortar o coração.

Ao ver a menina, o rosto de Tia Nastácia iluminou-se como um sol de alegria.

— Meu Deus do céu! Será verdade o que estou vendo? Não será sonho?

— Não é sonho, não, boba! Sou eu mesma que voltei dos espaços infinitos com Pedrinho, Emília, o Conselheiro e o anjo — e agora vamos seguir para a Terra.

— Conselheiro? Anjo? — repetiu a negra, tonta. — Que história é essa, menina? Não estou entendendo nada…

— Conselheiro é o nome que Emília pôs no Burro Falante. E o anjo… ah, o anjo é uma coisa que só vendo. Um anjinho de verdade que Emília achou na Via-láctea. De asa quebrada, o coitadinho. A esquerda… o ente mais galante do mundo, Nastácia! Vovó vai abrir a boca. Nunca houve anjo de verdade na Terra, como você não ignora. O nosso vai ser o primeiro. E gulosinho, sabe? Chupou uma bala puxa-puxa que Emília lhe deu e gostou, apesar de nunca haver chupado bala em toda a sua vida.

— Credo! — exclamou a preta.

— E o dragão? Como se tem arrumado com ele?

— Nem fale, Narizinho! — exclamou a negra fazendo o pelo-sinal. — Não sei por que São Jorge não mata duma vez esse horrendo bicho. Dá cada urro que meu coração pula dentro do peito que nem cabritinho novo…

— Dragão que urra não morde, bobona! — disse a menina. — São Jorge afirma que é mais manso que um cordeiro.

— Essa não engulo! — rosnou a preta. — Cada vez que o estupor me vê lambe os beiços e põe de fora uma língua vermelha deste tamanho! Não come gente? É boa!… Pois não ia comendo o burro?

— Mas burro não é gente, Nastácia. Há uma diferença.

— Diferença? Qual é a diferença que há entre gente e aquele burro que fala e diz cada coisa tão certa que até eu me benzo com as duas mãos?

Conversaram sobre mil coisas, inclusive as comidinhas que ela havia feito para São Jorge.

— Coitado! — suspirou a negra. — Santo bom está ali. E é um bom garfo, sabe? Comeu uma panqueca que eu fiz e lambeu os beiços que nem o dragão. E para comer bolinhos não há outro. É dos tais como o Coronel Teodorico: não deixa nem um no prato para remédio.

— Que pena! — exclamou a menina. — Se ele houvesse deixado algum, seria para mim um regalo. Estou com uma fome danada…

Saindo dali a menina foi ter com os outros. Encontrou Emília contando com todo o espevitamento mil coisas a São Jorge, algumas já bastante aumentadas.

— E o meu presente? — perguntou o santo. —, Esqueceu-se?

Eles não haviam passado perto da Cabeleira de Berenice e, portanto Emília não pudera arrancar o fio de cabelo que havia prometido ao santo. Mas não se deu por achada. Respondeu com o maior cinismo:

— Não me esqueci, não. Vou buscá-lo.

E saindo dali sabem onde foi? Foi conferenciar com o Burro Falante. Ninguém ouviu o que disseram, mas o caso é que Emília voltou com um embrulhinho muito malfeito.

— Aqui está! — disse ela com todo o desplante, entregando a São Jorge o embrulhinho. — Em vez dum fio só, como prometi, eu trouxe três…

Se alguém fosse contar os cabelos da cauda do Burro Falante, era muito possível que encontrasse a falta de três fios…

 

20 – A aflição dos astrônomos

Certa vez, lá no sítio, Dona Benta explicou aos meninos o que era “sistema planetário”. Parecia um bicho-de-sete-cabeças, mas a boa velha costumava explicar as coisas mais difíceis de um modo que até um gato entendia.

— Sistema — disse ela — é um conjunto de coisas ligadas entre si. E sistema planetário é um conjunto de planetas ligados entre si e o Sol, em torno do qual giram. Este sítio, por exemplo, é um pequeno sistema…

— Sistema de quê? — perguntou Pedrinho. — Planetário não é, porque nós não somos planetas.

— Não somos aqui no sítio um sistema planetário, mas somos um sistema de gentes e coisas. Eu sou o centro, a dona das terras e da casa e das coisas que há por aqui. Vocês são meus netos. Tia Nastácia é minha cozinheira. O Tio Barnabé é meu agregado, isto é, mora em minhas terras com meu consentimento. Há aqui estes objetos caseiros — a mesa, as cadeiras, as camas, o relógio da parede…

— O guarda-chuva grande, os travesseiros de paina, o pote d’água — ajudou Emília.

— Sim, há todos os objetos que nos rodeiam. E lá fora há os animais, a Vaca Mocha, o Burro Falante, o Senhor Marquês de Rabicó, o pangaré de Pedrinho. São entes vivos e coisas inanimadas que giram em redor de mim. São os meus planetas. Eu sou o Sol de tudo isso. Se eu morrer, tudo isso se dispersa. Um vai para cá e outro para lá. Os objetos mudam de dono. Alguém é até capaz de comer o Rabicó assado e de botar o Burro Falante numa carroça. Mas enquanto eu estiver viva e aqui no meu posto de dona, tudo permanece como está e me obedece. Isto quer dizer que formamos aqui um “sistema familial”, em que todas as pessoas e coisas se relacionam à minha pessoa.

— Compreendo, vovó — disse Pedrinho. — As cadeiras e o pote do seu compadre Teodorico, a negra velha que cozinha para ele, as vacas e cavalos da fazenda dele, tudo que há lá não pertence ao nosso sistema aqui — pertence ao outro sistema — ao sistema familial do Coronel Teodorico — não é isso?

Dona Benta sorriu de gosto diante da esperteza do neto.

— Exatamente, meu filho. Gosto de ver como você compreende depressa.

— E eu também não compreendo depressa? — reclamou a menina em tom queixoso.

Dona Benta abraçou-a e botou-a no colo.

— Sim, Narizinho. Em matéria de inteligência você é em tudo igual a Pedrinho. Eu tenho a honra de ser avó de dois netos que são dois amores.

Foi a vez de Emília enciumar-se.

— E eu? E eu? — gritou ela.

— Você também, está claro, porque nunca houve no mundo uma boneca mais viva, mais esperta e inteligente.

Emília derreteu-se toda.

— Pois é isso — volveu a boa senhora retornando ao assunto. — Formamos aqui no sítio o nosso “sistema de pessoas, animais e coisas”. Ali adiante o Coronel Teodorico é o centro de outro sistema do mesmo gênero. O Elias Turco é centro dum terceiro sistema. O próprio Tio Barnabé, que faz parte do nosso sistema, também é centro dum sistemazinho lá dele, composto da mulher, dos filhos e dos cacarecos que possui no casebre — aquele pote d’água, aquelas esteiras, aquelas panelas de barro tão velhas…

— E aquele cachorro sarnento também, o Merimbico — lembrou Emília.

— Sim, tudo isso forma um sistemazinho ligado ao nosso sistema familial. Pois com os astros do céu se dá a mesma coisa. Há pelo éter infinito milhões de sistemas planetários em que certo número de astros giram em redor dum sol, como vocês giram em redor de mim. Vem daí o nome de “sistema planetário”, porque os astros que giram em redor de um sol são os planetas desse sol.

— Já sei — gritou Pedrinho. — E dentro desse sistema planetário do sol, há outros sistemazinhos menores, como aqui o do Tio Barnabé. Os satélites.

— Exatamente — concordou a velha. — Temos o nosso Sol como a Dona Benta celeste. Em redor do Sol giram os planetas Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Netuno e também grande número de planetóides.

— Se a senhora é o Sol — lembrou a menina — Emília é Mercúrio — o planeta menor. E eu sou Vênus, o mais bonito.

— Olha a gabola!

— E você, Pedrinho, é Marte, o mais valente. E Tia Nastácia é Júpiter — o mais gordo de todos. E Saturno é a Vaca Mocha — sempre lá fora, já mais longe aqui do centro…

— E Urano, que é longíssimo? — perguntou Pedrinho.

— Urano é aquele cedrão do pasto. E Netuno é o Tio Barnabé que mora nas divisas do sítio.

— Muito bem — aprovou Dona Benta. — Nós moramos no sistema planetário do Sol. Mas cada estrelinha do céu visível a olho nu ou graças ao telescópio, é também um sol com, talvez, o seu sistema planetário.

Emília interrompeu-a com uma das suas.

— Dona Benta, olho nu não é indecente? — perguntou ela com a maior simplicidade, fazendo que todos rissem.

A boa velha achou que não valia a pena responder e prosseguiu:

— Deve haver milhões de sistemas planetários por esse universo infinito. Nós vivemos num deles. O Sol é o pai de todos nós aqui — nós planetas; nós plantas; nós bichões ou bichinhos. Se o Sol desaparecer, todos nós levaremos a breca. Os planetas rolarão pelo espaço, desgovernados e tontos, até se escangalharem, e nós aqui, bichinhos da Terra, morreremos de frio e horror…

Essa conversa fora dias antes do passeio dos meninos pelo céu e muito contribuíra para que eles se animassem a tentar a grande aventura, com o fim de ver com os próprios olhos como eram as coisas por lá.

Mas o sistema planetário do Sol é uma coisa muito bem arranjadinha, tal qual o maquinismo dum relógio. Um relógio só funciona bem quando tudo está em seu lugar — todas as rodinhas e pecinhas. Se alguma delas se desarranja, ou se cai entre elas um grão de poeira, o relógio para, ou começa a “reinar” — a atrasar-se ou adiantar-se.

Foi o que se deu com o sistema planetário do Sol durante a reinação celeste dos meninos. Esse sistema sempre vivera quieto, bem arrumadinho, sem perturbações, até o dia em que eles começaram a atrapalhar tudo. E tais coisas fizeram lá por cima, que até produziram um satélite novo: lá estava o Doutor Livingstone girando em redor da Lua como um satelitezinho pernudo!…

Ora, os astrônomos são uns sábios admiráveis aos quais não escapa coisa nenhuma do céu. Sempre a espiarem pelos seus telescópios, vão vendo tudo, tomando nota de tudo e fazendo cálculos. Logo que os meninos chegaram à Lua, começaram os astrônomos a observar “perturbações inexplicáveis”, e de repente perceberam um satélite da Lua, coisa que nunca tinham visto antes — e um satélite diferente de todos os satélites conhecidos — em vez de redondo, tinha perninhas, braços e chapéu de explorador africano, com fitinha atrás! Em seguida observaram uma grande perturbação na cauda do cometa de Halley, como se um burro andasse pastando por lá. E depois deram com manchas nos anéis de Saturno, como se alguém andasse patinando por lá.

Essas perturbações, jamais observadas, causaram a maior sensação no mundo da ciência. Numerosos artigos foram publicados na imprensa, e o povo ignorante tremeu de medo, julgando que fossem sinais de “fim do mundo”.

Infelizmente os telescópios ainda não eram bastante poderosos para que os sábios pudessem ver os meninos reinando no espaço; eles verificavam as perturbações, mas não descobriam a causa — e começaram a formular hipóteses. E ainda estavam nisso, quando foi inaugurado o gigantesco telescópio de Palomar, na Califórnia, que custou 6 milhões de dólares e tinha uma lente de 5 metros e meio de diâmetro. Por meio desse potentíssimo óculo de alcance puderam eles descobrir o mistério das perturbações celestes: os famosos netos de Dona Benta andavam reinando por lá!

E enquanto isso, a pobre vovó suspirava sentidamente lá em sua redinha da sala de jantar. Seus amados netos haviam desaparecido misteriosamente, e Tia Nastácia também, e o Burro Falante e o Doutor Livingstone. Por onde andariam? Dona Benta mandou procurá-los por toda parte, pelos vizinhos e pela vida — chegou até a dar parte à polícia e pôr aviso nos jornais. Tudo inútil. Ninguém dava a menor notícia das crianças — e ela suspirava tristemente em sua redinha da sala de jantar.

Mas assim que os astrônomos descobriram a causa das perturbações celestes, trataram imediatamente de pedir providências à avó dos “perturbadores” e vieram em comissão ao sítio de Dona Benta.

Isso foi por uma linda tarde de abril. Dona Benta havia acabado de dar um profundo suspiro quando ouviu barulho na porteira. Estavam batendo palmas e gritando, “ó de casa!” Ela ergueu-se da redinha e foi espiar.

— Que será, meu Deus do céu! — murmurou, vendo parados na porteira uma porção de homens esquisitíssimos, de cartola, grandes barbas e óculos.

— Dá licença? — gritou o maioral do grupo assim que a avistou.

— Entrem! — respondeu a boa velha. — A casa é de Vossas Excelências.

Mas notou que os tais homens vacilavam, como se estivessem com medo de entrar e gritou de novo: “Entrem. Não façam cerimônias”.

Os homens barbudos e cartoludos pareciam sem ânimo de abrir a porteira — e Dona Benta percebeu a razão: a Vaca Mocha estava deitada no caminho, mascando umas palhas de milho. Tamanhos homens com medo de vaca, imaginem!

— Entrem sem susto! — gritou ela de novo. — A Mocha é mansíssima. Nunca chifrou ninguém.

Criando coragem, os sábios abriram a porteira e, arrepanhando as sobrecasacas como se fossem saias, deram uma cautelosa volta por trás da Mocha, a qual nem se mexeu. O pacífico bovino não ligava a menor importância a astrônomos.

Aproximaram-se todos da varanda e pararam, com o maioral à frente. Era o mais barbudo e de óculos mais fortes que os outros.

— Minha senhora — disse ele tirando o chapéu — viemos aqui em comissão pedir o apoio de Vossa Excelência num caso que muito nos está preocupando. Somos astrônomos.

Dona Benta estremeceu. Astrônomos? Que queriam com ela aqueles astrônomos tão importantes? E convidou-os a subir. Os astrônomos subiram os sete degraus da varanda e apertaram a mão da boa velha, um depois do outro. O maioral tossiu o pigarro e disse:

— Minha senhora, as perturbações que temos observado em nosso sistema planetário nos induziram a vir aqui em comissão pedir enérgicas providências…

Dona Benta estranhou aquelas palavras. Se havia perturbações no sistema planetário, que tinha ela com isso? E como também fosse uma excelente astrônoma, interrompeu o discurso do maioral para dizer:

— Se tem havido perturbações em nosso sistema planetário, com certeza será devido a alguma nova mancha do Sol recentemente aparecida. Tenho aqui a obra do Padre Secchi sobre o Sol, e sei das terríveis influências que tais manchas exercem sobre o nosso planeta.

Os sábios entreolharam-se. Ouvir aquela velhinha, ali naquele sítio, falar em manchas do Sol e no Padre Secchi, era um estranho fenômeno. Mas aceitaram o estranho fenômeno e o chefe prosseguiu:

— Não, minha senhora. Desta vez a causa das perturbações não decorre das manchas do Sol e sim de dois meninos, uma boneca, um burro e um sabugo de cartola que andam a fazer estrepolias no éter. Foi o que o telescópio de Palomar nos fez ver — e aqui estamos para pedir a preciosa intervenção de Vossa Excelência.

— Será possível? — exclamou Dona Benta tirando os óculos. — Será possível que meus netos andem pelo éter?… Há já vários dias que desapareceram daqui, e também a minha cozinheira, o Burro Falante e o Doutor Livingstone — mas nem por sombras me passou pela cabeça que tivessem ido para o céu. Parece incrível!…

— A nós também, minha senhora. Muita dor de cabeça tivemos para decifrar o enigma, mas hoje estamos seguros do que afirmamos. A causa de vários transtornos observados na “harmonia universal” são as reinações de seus netos lá em cima.

— Meus senhores — respondeu Dona Benta botando de novo os óculos — muito sinto o que está acontecendo, e quando eles aparecerem hei de passar-lhes um bom pito. Podem ficar sossegados que outra não acontecerá. Vou chamá-los.

Os astrônomos abriram a boca diante daquele “Vou chamá-los”.

— Mas… mas como vai Vossa Excelência comunicar-se com eles? — perguntou o maioral.

— Nada mais simples. Desde que sei onde estão, é só chamá-los com um bom berro.

Disse e, chegando ao gradil da varanda, levou à boca as mãos em forma de concha e com toda a força dos pulmões gritou:

— Pedrinho! Narizinho! Emília! Desçam já daí, cambada!

E voltando-se para os astrônomos:

— Pronto, meus senhores. Posso garantir a Vossas Excelências que daqui a pouco estão de volta — e mortinhos de fome, como sempre acontece no fim de cada aventura.

Em seguida ofereceu-lhes café.

— Estou sem cozinheira. Sentem-se por aqui enquanto vou eu mesma preparar um café com bolinhos. Não façam cerimônias.

Os astrônomos sentaram-se por ali e a boa senhora foi para a cozinha preparar o café. O maioral, que era um sueco de mais de dois metros de altura, ocupou justamente a banquetinha de pernas serradas de Dona Benta — e ficou um perfeito N invertido — assim: И — com os joelhos à altura do queixo…

 

21 – O grito de Dona Benta

Enquanto isso, os meninos lá na Lua contavam a São Jorge como eram as coisas em Saturno.

— Gostosura maior não pode haver! — dizia Narizinho. — A gente boiava, boiava como peixe na lagoa — e aquele saturnino de geleia ali a conversar como se fosse um amigo velho. Eles têm uns crocotós que saem de dentro da gelatina — são os órgãos lá deles.

São Jorge não sabia o significado de “crocotó” e a menina teve de explicar que era uma das melhores palavras do vocabulário da boneca.

— A Emília gosta de usar termos de sua invenção e às vezes saem coisas bem boas. Esse crocotó é ótimo.

— Mas afinal de contas que é crocotó? — indagou o santo.

— Crocotó é uma coisa que a gente não sabe bem o que é. Crocotó é tudo que sai para fora de qualquer coisa lisa. O seu nariz, por exemplo, é um crocotó da sua cara — mas como sabemos que nariz é nariz, não dizemos crocotó. Mas se nunca tivéssemos visto o seu nariz, nem soubéssemos o que é nariz, então poderíamos dizer que o seu nariz era um crocotó…

São Jorge franziu a testa no esforço de entender aquilo — e se não entendeu fingiu que entendeu e passou adiante. Pôs-se a contar a história do dragão, nos tempos da sua mocidade na Terra. Falou do rei da Líbia e da bela princesa que o dragão quase havia devorado.

— Mas apareci de repente — disse ele — e dei um grande brado: “Sus! Sus!” O dragão, que já estava com a boca aberta e a língua de fora, entreparou e virou a horrenda cabeça para meu lado — e eu então, zás! Fisguei-o com a lança.

— Esta mesma? — quis saber Emília, apontando para a lança no colo do santo.

— Sim — respondeu São Jorge. — Fisguei-o, e ele, então…

Foi exatamente nesse “então” que o berro de Dona Benta chegou até lá — “Pedrinho! Narizinho! Emília! Desçam já daí, cambada!”

O santo capadócio interrompeu a frase e todos puseram-se de ouvido alerta.

— Lá está vovó nos chamando! — disse Pedrinho. — Como será que descobriu que estamos aqui?

— E temos de voltar já, numa voada — acrescentou a menina. — Mas… e o Doutor Livingstone? — Como deixá-lo perdido por estas imensidades infinitas?…

Pedrinho andava com uma hipótese na cabeça.

— Para mim — disse ele — o Doutor Livingstone está girando em redor da Lua como um satélite. Está na zona neutra — na zona em que a força de atração da Terra equilibra-se com a força de atração da Lua, e por causa disso não cai nem na Terra nem na Lua — fica girando eternamente em redor da Lua. Temos de passar por essa zona e agarrá-lo por uma perna.

Mas como arrancar o Doutor Livingstone de sua órbita? Era um problema dos mais difíceis. No voo para a Terra eles iriam cortar a órbita do novo satélite da Lua, isso era evidente: mas o satélite podia estar muito distante do ponto da órbita que eles cortariam. Como fazer para cortar a órbita exatamente no ponto em que estivesse o satélite-Livingstone?

— Só fazendo cálculos astronômicos — lembrou a menina. — Os astrônomos descobrem no céu tudo quanto querem por meio de cálculos. Lembra-se do que vovó contou do tal astrônomo Halley?

São Jorge quis saber o que era. Narizinho tentou explicar.

— Pois esse Halley previu que um grande cometa ia passar pelo nosso céu em… em… em que ano mesmo, Pedrinho?

Pedrinho, que sabia aquilo na ponta da língua, gritou:

— Em 1.758! Halley previu isso por meio de cálculos. Mas não pôde ver se seus cálculos deram certo, porque morreu em 1.742.

São Jorge estava de boca aberta, admirado da ciência do menino.

— Pois bem — continuou Pedrinho — dezessete anos depois da morte de Halley o tal cometa apareceu de novo, exatinho no ponto indicado e no ano que ele disse — 1.758. Só que em vez de aparecer em meados de abril, como Halley previra, apareceu a 12 de março — menos de um mês de diferença. Era um errinho insignificante para um cometa que só aparece de setenta e tantos em setenta e tantos anos.

— Mas isso é estupendo! — exclamou São Jorge sacudindo a lança no ar de tanto entusiasmo. — Prever por meio de cálculos que um cometa vai aparecer em tal ponto do céu, em tal mês e tal ano, parece-me o assombro dos assombros!…

— Pois é para ver! — tornou Pedrinho. — A matemática é o que há de batatal, como diz a Emília, e esse Halley era batatalino na matemática. Depois de 1.758 outros astrônomos calcularam que o cometa ia aparecer de novo em 1.834 e a 24 de maio de 1.910.

— E apareceu?

— Apareceu, sim. Vovó o viu muito bem quando apareceu em 1.910, no dia 6 de maio. O erro foi ainda menor — só de dezoito dias. Batatalífero, não?

São Jorge ficava tonto com as batatalidades daquele menino…

— Pois é isso, Pedrinho — disse a menina. — Você também é astrônomo. Faça os cálculos e marque o momento e o ponto em que o Doutor Livingstone vai passar, e nós cheiraremos o pó nesse momento exato.

A boca de São Jorge não se fechava. Aquelas crianças falavam que nem um livro aberto…

Mas Pedrinho, com medo de errar nos cálculos e desmoralizar a astronomia, veio com uma desculpa.

— Não posso fazer os cálculos porque não tenho papel nem lápis.

— Isso é o de menos! — gritou Emília. — Papel eu tenho aqui no bolso — o papelzinho da bala puxa-puxa, e lápis Tia Nastácia tem no fogão — um pedacinho de carvão serve — e correu a buscar o “lápis” depois de entregar ao menino o papel da bala.

O pequeno Flammarion não teve remédio senão fazer todos os cálculos — e foi com base nesses cálculos que marcou o instante da partida, dizendo:

— Neste momento exato o Doutor Livingstone deve estar passando no ponto X de sua órbita. Partiremos então daqui e de passagem o agarraremos por uma perna.

E assim foi. Depois das comoventes despedidas do santo, o qual deu um beijo na Emília e outro no anjinho, os aventureiros celestes sorveram o pó de pirlimpimpim na horinha indicada pelas contas do jovem Flammarion.

Fiunnn!…

Tudo deu certissimamente certo. Eles cruzaram a órbita do satélite-Livingstone no momento exato em que o sabugo de cartola ia passando. Pedrinho agarrou-o pelo pé e lá se foram todos para a Terra.

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