O Sítio… Décima Primeira Parte (Útima)

REINAÇÕES  DE  NARIZINHO

Décima Primeira Parte: O Pó de Pirlimpimpim

1 – O burro falante

            Dona Benta estava na cozinha conversando com tia Nastácia.

            – Que terá havido? – dizia ela. – Os meninos ontem foram para a cama cedo demais. Percebi logo que era sinal de grossa travessura para hoje. De manhã, quando me levantei não vi nenhum. Tinham sumido sem ao menos tomarem café. Por onde andarão os diabretes?

            A negra, que estava frigindo uns lambaris, apenas disse:

            – Essas crianças fazem coisas da gente se benzer com as duas mãos, sinhá.

Com certeza foram visitar algum rei lá na terra das fadas. Mas não se incomode, sinhá. Quando a fome der, largam todos os reis do mundo para virem correndo atrás destes lambarizinhos fritos.

            – Inda é o que vale – concordou dona Benta. – A fome é a única coisa que faz Pedrinho e Narizinho não se separarem de nós…

            Isso foi daquela vez em que partiram com o Peninha para a primeira viagem maravilhosa. Eles ainda não tinham voltado, mas já vinham vindo.

            O relógio bateu seis horas.

            – Tão tarde já, Nastácia! Estou com medo que lhes tenha acontecido qualquer coisa… – disse dona Benta apreensiva, indo postar-se na varanda, de olhos na estrada.

            Minutos depois viu lá longe uma nuvem de poeira.- Vem vindo um cavaleiro! Ande, Nastácia, você que tem melhor vista, venha ver se descobre quem é.

            A negra veio da cozinha, com a colher de pau na mão, e olhou.

            – São eles, sinhá. Vêm tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria…

            O burro vinha na galopada e breve parou no terreiro com sua penca de gente no lombo. Peninha montava no meio, trazendo o Visconde na mão; Narizinho montava à garupa, com a Emília no bolso; Pedrinho ocupava a frente.

            Pularam do animal e dirigiram-se para a varanda.

            – Que coisa esquisita! – murmurou tia Nastácia – Repare, sinhá, que o Visconde vem pendurado no ar, com uma pena de papagaio voando em cima dele…

            – Boa tarde, vovó! – gritou Narizinho ao pisar o primeiro degrau da escada. – Aqui estamos de novo, depois dum dia inteiro de aventuras espantosas…

            – Estou vendo – respondeu dona Benta – e muito contente fico de nada de mau ter acontecido. Mas não posso compreender o que significa essa coisa do Visconde vir pendurado no ar, com aquela pena em cima…

            Os meninos deram uma gargalhada.

            -Nem que a senhora pense um século é capaz de adivinhar, vovó! Veja se consegue…

            Dona Benta olhou, olhou, pensou, pensou e nada. Consultou a negra com os olhos. Depois disse:

            – Impossível. Diga logo, que já estou ficando aflita.

            – É o Peninha! – berrou Emília. A velha ficou na mesma.

            – É o Peninha que vem carregando o Visconde! – berrou a boneca inda mais alto.

            A boa senhora olhou para a negra, fazendo beiço. Não entendia nada.

            Narizinho então teve dó dela e contou a história inteira do menino invisível que os levara ao País das Fábulas.

            – Ele vem carregando o Visconde, mas como é invisível a gente só vê o Visconde…

            As duas velhas não tiveram palavras para comentar o maravilhoso caso. Limitaram-se a abrir a boca, com os olhos fixos na peninha.

            Nisto o burro relinchou no terreiro. Todos voltaram o rosto. Dona Benta perguntou de quem era o animal.

            – De ninguém – respondeu o menino. – É nosso. Salvamo-lo das unhas do tigre e agora está tão amigo que vem morar conosco para sempre.

            – É bom de marcha?

            – Mais que isso, vovó. É um burro falante…

            Os olhos da negra, já tão arregalados, arregalaram-se ainda mais e sua boca abriu, abriu, abriu de caber dentro uma laranja. Burro falante! Era demais…

            – Será possível, sinhá? Mecê acredita?…

            – Tudo é possível, Nastácia. Se papagaio fala, por que não há de falar um burro?

            – Mas ele não fala como papagaio, vovó – explicou Pedrinho. – Papagaio só repete o que a gente diz. Este burro pensa para falar. Se a senhora ouvisse o discurso dele na assembléia dos animais pesteados, havia de ficar boba de espanto.

            – Nesse caso, precisamos recebê-lo com toda a consideração.

            Nastácia, leve-lhe umas espigas de milho bem bonitas e água bem fresca.

            A negra obedeceu. Foi ao paiol escolher as melhores espigas e encheu uma vasilha com água da talha. Mas quando chegou ao terreiro parou, sem ânimo de aproximar-se do burro.

            – Não tenho coragem, sinhá! – disse ela virando os olhos para dona Benta. – Se ele me diz uma graça, caio para trás, de susto…

            – Não seja boba! Ele tem cara de pessoa muito séria.

            A negra deu mais dois passos e parou de novo. Não tinha coragem!… O mais que fez foi botar o milho no chão, sobre uma toalha, com a vasilha d’água ao lado, murmurando:

            – Ele se quiser que venha até aqui. Eu é que não chego perto – e recuou uns passos, para ver.

            O burro compreendeu o medo muito natural da negra. Foi-se chegando devagarinho e comeu o milho e bebeu a água tão gostosa.

            Mas como fosse de muita educação, lambeu discretamente os beiços.

            – Muito obrigado, tia. Deus lhe pague – murmurou com toda a clareza.

            – Acuda, sinhá! – berrou a pobre preta. – Fala Mesmo, o canhoto! – e botou-se para a cozinha, fazendo mais de vinte sinais-da-cruz.

 

2 – Dona Benta de cabeça virada

            Não durou muito aquela situação. Tia Nastácia foi perdendo o medo que tinha ao burro e acabou grande amiga dele. Era quem o tratava, quem lhe dava milho e água e ainda quem lhe passava a raspadeira todas as semanas. Enquanto isso, conversavam. Tinham prosas tão compridas que a boneca chegou a dizer, piscando os olhinhos de retrós:

            – Isto ainda acaba em casamento!…

            Peninha havia desaparecido na mesma noite da chegada, depois de restituir a Emília sua pena de papagaio e prometer a Pedrinho voltar mais tarde a fim de levá-los ao Mar dos Piratas.

            Dona Benta ouviu a história do passeio ao País das Fábulas com especial interesse para tudo quanto se referia ao senhor de La Fontaine, cujas obras havia lido em francês. Sempre tivera grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do mundo.

            – Estou lamentando não ter ido com vocês – disse ela. – Uma prosinha com o senhor de La Fontaine seria dum grande encanto para a minha velhice…

            Tais palavras fizeram Pedrinho bater na testa…

            – Tive uma grande idéia, vovó – berrou ele. – Levar a senhora lá!… Já sabemos o caminho e temos o burro falante para nos conduzir. Que acha?

            A grande idéia tonteou dona Benta como se fora uma paulada no crânio.

            – Que despropósito, Pedrinho! Não sabe que sou uma velha de mais de sessenta anos? Que não diria o mundo quando soubesse dessa extravagância?

            – O mundo não precisa saber de nada, vovó. A senhora vai incógnita, como os reis quando querem divertir-se. Deixe o negócio por minha conta, que sairá tudo direitinho…

            A idéia de conhecer pessoalmente o senhor de La Fontaine virou duma vez a cabeça da boa senhora. Três dias passou a pensar naquilo, vai, não vai, sem ânimo de decidir-se. Pedrinho, porém, tanto insistiu que…

            – Vou, menino, vou! – disse ela afinal. – Mas pelo amor de Deus não me atropele mais.

            As crianças ficaram num delírio. Levarem sua querida vovó ao País das Fábulas foi coisa que nem em sonhos lhes passara pela cabeça.

            – Era o suco! – dizia Pedrinho dando pinotes.

            A semana passou-se assim, em discussões e preparativos, tudo em segredo para que tia Nastácia não desconfiasse. Era preciso que nem a negra soubesse da “caduquice” de dona Benta. Afinal chegou o grande dia.

            – Nastácia – disse dona Benta sem ânimo de a encarar de frente – vou fazer hoje um demorado passeio com os meninos. Se aparecer alguém, diga que estou na casa do compadre Teodorico.

            Saíram, a boa velha na frente com os netos, Emília e o Visconde atrás, este arcado ao peso da célebre canastrinha. Fingiram ir do lado da fazenda do tal compadre Teodorico, mas na primeira curva do caminho esconderam-se numa moita enquanto Pedrinho voltava para pegar o burro. Tudo para que tia Nastácia não desconfiasse de nada.

            Veio o burro e dona Benta tentou montar. Quem disse! Não houve meio. Sem uma cadeira não ia.

            – Já não tenho a agilidade dos bons tempos – suspirou ela. – Creio que nunca poderei montar neste burro…

            – Ali adiante há um toco que poderá servir de cadeira – murmurou o burro na sua voz mansa de animal falante.

            Apesar de corajosa, a boa velha não deixou de sentir um frio na espinha, ao ouvir tais palavras pronunciadas por tal boca. Dirigiram-se ao toco indicado e, afinal, com a ajuda dos meninos, da Emília e até do Visconde, dona Benta pôde montar. Narizinho pulou à garupa, com Emília no bolso. Pedrinho ocupou a frente e o Visconde foi amarrado à crina do animal.

            – Tudo pronto? – gritou Pedrinho.

            – Parece que sim – respondeu dona Benta.

            – Nesse caso, cheire isto, vovó! – disse ele, tirando dum canudo uma pitada do pó mágico e chegando-a ao nariz da velha.

            – Oh, Pedrinho! – exclamou dona Benta escandalizada. – Bem sabe que não tomo rapé.

            Todos caíram na gargalhada.

            – Não é rapé, vovó! É muito bom pó de pirlimpimpim, que Peninha me deu. Sem cheirar este pó nunca chegaremos ao País das Fábulas.

            Ao ouvir aquilo, Emília arregalou os olhos.

            – País das Fábulas? Então é para lá que vamos outra vez? Vocês prometeram que a segunda viagem seria para o Mar dos Piratas!…

            – Ao Mar dos Piratas temos de ir com o Peninha. É coisa para outro dia. Hoje vamos apenas dar um pulinho ao País das Fábulas para apresentar vovó ao senhor de La Fontaine.

            – E por que não apresentar dona Benta a um pirata? Os piratas são muito mais interessantes que os fabulistas.

            – Para você. Vovó prefere meia hora de prosa com um fabulista a ver todos os piratas do mundo.

            – Então não vou! – disse Emília, emburrando.

            – Sua alma sua palma – respondeu secamente a menina, tirando-a do bolso. – Ninguém a obriga – e fez um gesto de a arremessar ao chão.

            Vendo que o negócio era sério, Emília armou cara de riso, muito desconchavada, e disse:

            – Estou brincando, boba!…

            Todos cheiraram o pó de pirlimpimpim, e imediatamente começaram a sentir a vista turva, a cabeça tonta, com uma zoada de pião nos ouvidos – fiunn…

            Dona Benta, assustada, quis apear-se.

            – Parece que vou morrer! – gritou. – Acudam-me!…

            – Não tenha medo, vovó! É assim mesmo. Este fiun dura enquanto estivermos voando. Depois pára – sinal de chegada.

            De fato foi assim. O fiun zuniu no ouvido deles por algum tempo e por fim cessou.

            – Chegamos – disse Pedrinho descendo do burro – Pode apear, vovó.

            Dona Benta estava mais morta que viva.

            – Uf! – exclamou, escorregando do animal abaixo – Estou muito velha para estas maluquices. O tal fiun me deixou tonta, tonta…

 

3 – As árvores gêmeas

            Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na quantidade certa, nem mais, nem menos, se não vai parar para lá ou para cá do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito diferente do País das Fábulas.

            Em vez do lindo campo de veludo verde, cortado pelo rio na beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano, com enormes rochas negras dum lado e o mar de outro. Nem floresta, nem vegetação nenhuma – além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o burro parara. Assim que pulou em terra, Pedrinho correu os olhos em torno.

            – Erramos, vovó! – disse ele. – Isto nunca foi o País das Fábulas. Está me cheirando a alguma das terras das Mil e Uma Noites.

            – E agora? – perguntou a velha, já com medo. – Melhor voltarmos. Estou sentindo uma coisa esquisita no coração…

            – Sim, podemos voltar – concordou o menino – mas primeiro temos de tomar fôlego e esperar que passe a sua tontura.

            Dona Benta concordou e, suspirando, sentou-se numa das raízes da árvore, a abanar-se com o lenço, muito queixosa da falta de ar.

            Pedrinho amarrou o burro pelo cabresto e pôs-se a examinar a paisagem.

            – Que árvores tão esquisitas! – disse erguendo os olhos para cima. – Os troncos sobem em linha reta, mais grosso no alto do que embaixo!…

            – E repare a copa – disse a menina também de nariz para o ar. – Não parece formada de folhas, como todas as árvores, e sim de penas, ou coisa parecida. A casca também, veja, não se parece com casca de nenhum pau conhecido. Toda escamada, como pele de jacaré. Francamente, estou desconfiada destas árvores…

            Os troncos tinham as raízes de fora, quatro raízes para cada árvore, terminadas em pontas curvas, como enormes chifres de boi.

            De repente a raiz onde se sentara dona Benta mexeu-se.

            – Acudam! – berrou a pobre senhora dando um pulo. – A raiz mexeu!…

            Aquele grito assustou as árvores gêmeas, fazendo-as se destacarem do solo, com raízes e tudo, e erguerem-se no ar, levando o pobre burro pendurado pelo cabresto.

            – Misericórdia! – gritou dona Benta no auge do pavor. – Não eram árvores! Eram as pernas do pássaro Roca que confundimos com árvores! Sentei-me em cima do dedo do pássaro Roca pensando que era raiz…

            Tinha sido isso mesmo. Por um desses acasos da vida, os nossos viajantes haviam parado justamente debaixo do gigantesco pássaro das Mil e Uma Noites e tomaram as suas monstruosas pernas como troncos de duas árvores gêmeas…

            Felizmente eles eram pequeninos demais, em comparação com o pássaro Roca. Nem foram percebidos.

            Do contrário, teriam sido destruídos como se fossem pulgas. Estavam salvos, com exceção do burro falante, que lá se balançava no espaço, a espernear…

            – Que pena! – exclamou dona Benta compungida. – Um burro tão boa pessoa, tão bem falante!… Tia Nastácia vai ficar inconsolável…

            – Podemos salvá-lo, vovó – disse Pedrinho abrindo o mapa do Mundo das Maravilhas. – O barão de Munchausen tem um castelo aqui perto. Ele é o melhor atirador do mundo. Pode, com uma bala, cortar o cabresto do burro e salvá-lo. Resta que eu ache o barão em casa…

            Pedrinho resolveu ir procurar o castelo. Tomou uma pitada do pó de pirlimpimpim e cheirou-o, depois de recomendar:

            – Não me saiam deste ponto. Dou um pulo ao castelo e já volto.

            – Pelo amor de Deus, Pedrinho, não nos abandone neste maldito deserto! – implorou a nervosa velha. – Melhor irmos atrás desse barão todos juntos…

            Muito tarde. Pedrinho já havia cheirado o pó mágico, cujo efeito era instantâneo. Começou a virar fumaça de gente, breve desaparecendo da vista de todos. Dona Benta abanava-se, abanava-se, cada vez mais aflita. Aquilo lhe parecia o fim do mundo. Narizinho procurou consolá-la.

            – Não seja tão boba, vovó! Não tenha medo, que nada adianta. Faça como eu, que estou fresca da silva. Há tanto tempo que vivo nesta vida de aventuras, que já não sei ter medo. Seja lá o que apareça, leão, cuca, saci, onça ou pássaro Roca, a gente dá um jeito e no fim sai vencendo. Para que tremer assim, justamente agora que o perigo passou?

            – Não posso, minha filha. Não está em mim. Quando me lembro que uma criatura pacata como eu, de mais de sessenta anos, esteve sentada no dedo do pássaro Roca, meu coração pula dentro do peito como se fosse um cabrito…

            Até Emília caçoou da coitada.

            – Tamanha mulher! Tremendo porque esteve sentada num pé de galinha! Pois eu até no bico desse tal pássaro era capaz de dormir um sono sossegado.

            – É que você é inconsciente, Emília. Se eu fosse de pano, era provável que também não tivesse medo. Mas sou de carne…

            – Isso não, vovó! – protestou a menina. – Eu também sou de carne e não tenho medo de nada.

            – Você é outra inconsciente, minha filha. Tem a inconsciência natural da idade. Quando crescer há de ficar medrosa como eu.

            Estavam nessa conversa, quando Emília gritou:

            – Lá vem vindo Pedrinho com o barão de Munchausen! Todos voltaram-se e viram o vulto dos dois, lá longe. Estava o barão vestido de caçador, grandes botas, chapéu de três bicos, espingarda a tiracolo. Ao seu lado marchava Pedrinho, muito lampeiro de ver-se em tão nobre companhia. Vinha contando histórias das suas caçadas no sítio. Naquele momento o pássaro Roca reapareceu no céu, a grande altura, descrevendo círculos. Voava tão alto que nem dez tiros emendados poderiam alcançar metade do caminho.

            – Temos de esperar que ele baixe – disse o barão.

            – Enquanto isso o senhor dá uma prosinha com vovó, que deve estar morre não morre de medo.

            – Medo de quê?

            – De tudo. Vovó tem medo até de baratas. Hoje foi a primeira vez que a trouxemos ao mundo das aventuras. Mas erramos de terra e viemos parar bem embaixo do pássaro Roca. A coitada sentou-se no dedo dele e agora nem pensar nisso pode. Sente uma pontada no coração.

            O senhor de Munchausen contou que construíra ali aquele castelo justamente por causa do pássaro Roca. Já havia caçado quanta fera existe, desde rinoceronte até condor, menos pássaro Roca. Por isso jurara matar aquele. Queria ter entre os troféus da sua sala de armas pelo menos uma unha daquela gigantesca ave, já que o bico, perna ou asa não cabiam lá dentro.

            – Mas com essa espingarda o senhor não faz coisa nenhuma – disse o menino. – Bala, do calibre que for, é o mesmo que poeira para tamanho monstro.

            – Sei disso, e por isso não atiro com chumbo ou bala. Atiro com caroço de cereja. Esses caroços germinam na carne do pássaro e vão crescendo até virarem cerejeiras. Vou assim transformando o pássaro Roca em pomar. Um dia o peso das árvores fica demais para as suas forças e ele cessa de voar. Creio que já plantei uns cem pés de cereja no lombo do pássaro Roca!

            – Oh! – exclamou Pedrinho – muito melhor seria atirá-lo com semente de jequitibá.

            O barão, que nunca ouvira falar em tal árvore, franziu a testa. Pedrinho explicou:

            – É uma árvore que fica enorme, da grossura da mais grossa pipa. Na minha opinião, com meia dúzia de jequitibás plantados a tiro no pássaro Roca ele perde a cisma de voar pelo resto da vida.

            O senhor de Munchausen muito admirou a esperteza de Pedrinho, que ficou de lhe mandar sementes de jequitibá pelo primeiro portador. Nisto chegaram ao ponto onde dona Benta morria de medo ao lado de Narizinho e da boneca. O barão saudou-a cortesmente, à moda dos alemães.

            – Obrigada por ter vindo em nosso socorro, senhor de Munchausen! – disse dona Benta, retribuindo a cortesia. – Estou aqui mais morta do que viva, de medo daquele monstro que lá está voando no céu. Imagine, barão, que estive, muito fresca da minha vida, sentada, como pata choca, no dedo dele!…

            – Sossegue, minha senhora, que cá estou para defendê-la. Moro num castelo aqui perto, onde Vossa Excelência poderá repousar e acalmar os seus nervos. Já dei ordem aos meus criados para que a venham buscar na minha caleça. E esta menina? – disse mostrando Narizinho.

            – Minha neta. Uma danada, senhor barão! Não tem medo de coisa nenhuma. Está aqui a rir-se da pobre vovó medrosa…

            – Eu também não tenho medo de nada, senhor barão! – disse Emília com aquele seu célebre espevitamento.

            – Oh – exclamou o senhor de Munchausen, pegando-a do chão. – Se não me engano, é esta a tal boneca falante que está tão famosa no reino das fadas. Não há princesa que não conte histórias dela.

            Emília inchou de gosto.

            A conversa correu nesse tom por alguns minutos. Por fim dona Benta  abriu o cesto onde estava o mexido de galinha que trouxera.

            – Aceita uma coxinha, senhor barão?

            – Obrigado! Só como carne de animais ferozes.

            – Um pedacinho só, prove! – insistiu dona Benta. – Este mexido foi feito com o frango mais valente do terreiro.

            Tão cheiroso estava o petisco que o senhor de Munchausen perdeu a cerimônia. Sentou-se com os outros em roda do farnel e quase que sozinho deu cabo de tudo.

            – Parece sonho! – pensava consigo dona Benta ao ver aquilo. – Quando me lembro que eu, a pobre Benta Encerrabodes de Oliveira, uma coitada que nunca saiu da sua toca, está aqui, neste deserto misterioso, com o pássaro Roca a lhe voar em cima da cabeça e o mais famoso barão do mundo a comer com tanto gosto o mexido de galinha que ela mesma fez, até fico boba…

 

4 – Um soco histórico

            Nisto o pássaro Roca principiou a descer, sempre descrevendo círculos em espiral. O burro ia-se tornando cada vez mais visível e a pontada no coração de dona Benta cada vez mais forte. O barão preparou-se. Examinou a arma e carregou-a bem carregada. Pedrinho não podia compreender como um caçador daqueles, o mais célebre de todos, ainda usava espingarda de pederneira, em vez das modernas espingardas de fogo central. Explicação muito simples: o senhor de Munchausen era do tempo das espingardas de pederneira e portanto não podia conhecer as de fogo central.

            – Veja, vovó – disse o menino mostrando-lhe a espingarda do Barão. – Chama-se espingarda de pederneira porque tem esta pedra de isqueiro aqui junto ao ouvido. O gatilho dá na pedra e tira uma faísca, e a faísca lá vai incendiar a pólvora. Interessante, não?

            Dona Benta nem ouviu. Estava de olho mas era no pássaro Roca.

            – Uma vez – disse o senhor de Munchausen – perdi a pederneira desta mesma espingarda numa das minhas excursões, e justamente quando um veado ia passando. Pensam que me atrapalhei? Fiz pontaria e, há! dei um formidável soco no olho. Saiu uma faísca ainda melhor que as da pederneira – e matei o veado!

            Emília, assim que ouviu aquilo, ficou ansiosa por ver o barão repetir a façanha e, sem que ninguém percebesse, deu jeito de sacar fora a pederneira da espingarda – e escondeu-a. Queria ver se ele tirava mesmo fogo dos olhos ou era peta.

            O pássaro Roca ia continuando a descer.

            – Atire, barão! – berrou Emília.

            – É cedo, bonequinha! O cabresto ainda não está bem visível. Tenho de cortar o cabresto com uma bala no momento em que o pássaro estiver voando sobre o mar. Se não o burro cai em terra e acontece como o sapo que foi à festa do céu – esborracha-se!…

            A gigantesca ave desceu mais e mais. O cabresto tornou-se por fim bem visível.

            – É hora! – disse o barão erguendo a arma à cara. Fez a pontaria e – blef! – o gatilho deu em seco.

            – Com seiscentos milhões de trabucos! – praguejou ele. – Onde teria ido parar a pederneira desta arma?

            – Soque o olho! – berrou Emília.

            – Sim, é o que há a fazer. Mas como a pontaria tem de ser muito bem feita, vou segurar a espingarda com ambas as mãos e você, Pedrinho, prega o soco. Vamos, não tenha dó!…

            Todos ficaram em suspenso, sentindo que algo de muito importante ia acontecer. Tal qual no circo de cavalinhos, quando a música pára. Era um momento notável da vida de Pedrinho. Ia dar um soco histórico no olho do mais célebre caçador do mundo! E tinha de fazer serviço muito bem feito para não estragar o capítulo.

            – Soco inglês! – gritou Emília.

            O menino tirou o paletó, arregaçou a manga da camisa, girou três vezes no ar o punho cerrado e por fim – bam! deu tal murro que quase arranca o olho do barão fora da órbita. Mas valeu! Saiu uma faísca linda, que penetrou feito um corisquinho dentro do ouvido da arma e inflamou a pólvora. Bum! Um tiro reboou, daqueles que levam segundos ecoando por montes e vales. E certíssimo !… A bala deu bem no cabresto, cortando-o como se fosse navalha. O burro imediatamente começou a cair com velocidade crescente, até que, tchibum! – mergulhou no oceano.

            – Afundou para sempre, o coitado! – exclamou Narizinho.

            – Não tenha medo. Ele bóia já – disse o barão.

            De fato. Segundos depois aparecia à tona d’água uma aflitíssima cabeça de burro, a berrar:

            – Socorro! Acudam-me que não sei nadar!…

            – E esta agora! – exclamou o menino. – Querem ver que o nosso burro escapa do pássaro Roca para morrer afogado estupidamente, como um carneiro?

            – Vamos salvá-lo, Pedrinho! – disse o barão despindo o casaco e sacando as botas. – Será um crime deixarmos morrer um burro que fala.

            Entraram os dois pelo mar a dentro, nadando a largas braçadas em direção do náufrago.

            – Segurem-no pelo rabo e puxem! – berrava Emília da praia. – Mas não puxem fora de conta que podem arrancar o rabo!…

            Assim fizeram os salvadores. Um agarrou o burro pelo rabo e o outro pela orelha, e o vieram puxando para terra. Estava salvo o precioso burro falante, único exemplar conhecido, mas em que estado!… Ou por medo ou por ter passado tanto tempo no ar quase enforcado pelo cabresto, ou por ter bebido água demais, o caso era que nem falar podia. Apenas suspirava uns suspiros de cortar o coração de todos.

            – Água! – gritou dona Benta. – Dêem-lhe água!

            Emília, muito lampeira, pegou logo uma concha marinha das que abundavam por ali, encheu-a d’água do mar e despejou-a na boca do burro.

            – Que burrice, Emília! – gritou Narizinho tornando-lhe a concha. – Pois não vê que ele está morrendo de tanta água do mar que bebeu? Água quer dizer água doce, boba…

            – Pelo de cão se cura com a mordedura do próprio cão – respondeu a boneca, trocando as bolas dum dito que tia Nastácia usava muito.

            E não é que deu certo? Aquela água da concha enjoou de tal maneira o burro que ele começou a vomitar todo o oceano que havia engolido. Melhorou imediatamente e sentou-se na areia com as patas da frente espichadas, tal qual as esfinges do Egito.

            – Está melhorzinho? – veio perguntar dona Benta, passando lhe a mão pela cara.

            – Um pouco melhor, obrigado! – foi a resposta do delicadíssimo burro, que ainda por cima lhe agradeceu com os olhos – uns olhos muitos brancos, ansiados pelas agonias da morte.

 

5 – Fim do Visconde de Sabugosa

            – E o Visconde com a canastrinha? – lembrou Emília. – Estavam os “dois” amarrados à crina do burro, mas não vejo nem um nem outro.

            Sumira-se o Visconde, ninguém sabia como. Devorado pelo pássaro Roca? Afogado naquele mar imenso? Impossível apurar.

            Emília ficou aborrecidíssima, não tanto pelo Visconde, apesar de serem muito camaradas, mas pela canastrinha que com ele se perdera. Só se consolou quando dona Benta lhe prometeu outra ainda mais bonita. Súbito, Narizinho, que se afastara do grupo para juntar caramujos da praia, gritou:

            – Corram! Achei o Visconde!…

            Todos correram para lá, e de fato viram o pobre Visconde semi enterrado na areia, morto, completamente morto!… Tinha-se afogado, e fora trazido pelas ondas.

            Pobre Visconde! Sem cartola, de língua de fora, olhos cheios de areia, corpo metade comido pelos peixes… Todos se comoveram profundamente, sobretudo ao verem que não largara a canastrinha. Fiel como um cão, cumpridor da palavra como um verdadeiro nobre, perdera a vida, mas não perdera a carga que lhe fora confiada!…

            Até o senhor de Munchausen se comoveu.

            Descobriu-se, cruzou os braços e ficou de mão no queixo a contemplar aquele triste fim. Emília, porém, demonstrou mais uma vez que não tinha coração. Em vez de derramar uma lágrima, ou dizer umas palavras tristes, a diabinha limitou-se a abrir a canastra – para ver se o Visconde não havia furtado alguma coisa!… Depois teve uma idéia muito prática. “Depenou” o cadáver, isto é, arrancou-lhe as pernas e os braços roídos pelos peixes e guardou o tronco na canastrinha, dizendo:

            – Tia Nastácia é uma danada. Com este toco, aposto que faz um Visconde novinho e muito mais bonito.

            Por fingimento, ou porque realmente sentisse a morte do Visconde, o barão declarou que iria tomar luto no chapéu por três meses, visto que eles, barões e Viscondes, são parentes entre si – parentes em nobreza. Esse ato do senhor de Munchausen muito sensibilizou dona Benta, a qual cochichou ao ouvido de Narizinho:

            – Bem se diz que santo de casa não faz milagres! Nunca demos grande importância ao Visconde e, no entanto, veja, até luto por ele o senhor de Munchausen vai botar…

            Nisto ouviram tropel de cavalos. Era a caleça do barão que vinha chegando para levar dona Benta ao castelo.

 

6 – O pintão

            Tomaram a carruagem e foram. Pouco antes das muralhas do castelo havia um desfiladeiro por entre montanhas de pedra onde a carruagem parou de súbito. O senhor de Munchausen espichou a cabeça para ver o que era.

            – Uma enorme pedra rolou da montanha e trancou a passagem – disse o cocheiro.

            – Que bucha! – exclamou o barão apeando-se para estudar o caso. – Pedra nada! – gritou logo depois. – Isto é apenas um ovo do pássaro Roca, rolando de um ninho lá em cima. Bem desconfiado andava eu de que o ninho do monstro era aqui nesta montanha…Todos correram para ver e foi um abrir de bocas que não tinha fim. Nem por brincadeira haviam sonhado um ovo daquele tamanho, maior do que duas pipas postas uma em cima da outra. A casca era tão dura que apesar do ovo ter rolado do alto da montanha, batendo em quanta pedra havia, não se quebrara. Trincara de leve, só…

            – Que pena tia Nastácia não estar aqui! – lamentou dona Benta. – Havia de gostar de ver um ovo deste tamanho…

            E agora? Precisavam passar, fosse como fosse. Rolar o Ovo era impossível, por estar entalado entre rochas. O único meio seria despedaçá-lo. Assim resolveu o barão, e mandou que o cocheiro fosse correndo ao castelo buscar uma picareta.

            – Uma, não! Duas! Ou três! – gritou depois que o cocheiro partiu.

            – Quatro! – berrou Emília. Eu também quero quebrar ovo.

            O cocheiro trouxe cinco. Cada qual pegou na sua, e malhou na casca do Ovo com quanta força tinha. De repente o barão gritou:

            – Fujam, que vai escorrer clara e gema de virar tudo em omelete…

            Todos fugiram para os barrancos, inclusive a pobre dona Benta, que teve de ser içada pelos meninos.

            – Viver mais de sessenta anos para acabar trepando em barrancos de medo de virar omelete! Isso nunca foi vida… – lamentava-se a boa vovó.

            Inútil a debandada. O ovo partira-se sem derramar clara nem gema  nenhuma, pela simples razão de não ter nada disso dentro. O que havia lá dentro era um formidável pinto, que botou a cabeça de fora, a piar uns pios agudíssimos, de se ouvirem a dez léguas dali.

            O barão ficou apreensivo.  Aqueles piados eram capazes de chegar aos ouvidos do pássaro Roca, que não devia andar muito longe – e se a gigantesca ave os pilhasse a mexer com o seu ovo, certo que os devoraria a todos, como se fossem minhocas.

            – Cordas! – gritou ele aflito. – Corram ao castelo e tragam quantas cordas puderem…

            Pedrinho e o cocheiro voaram ao castelo atrás de cordas, voltando minutos depois com quantas havia.

            – Temos que amarrar o bico deste horrendo pinto sem perda de um instante, se não o Roca surge por aí e nos devora.

            Não foi nada fácil. O pintão defendia-se como um tigre. Só mesmo a força hercúlea do senhor de Munchausen, ajudado pelo cocheiro, por Pedrinho, pela menina, por Emília e até por dona Benta, poderia amarrar o bico do pinto Roca – e ainda assim tiveram de lutar muito tempo. Afinal, amordaçaram-no.

            – Conheceu, papudo? – gritou Emília de longe, quando viu o serviço feito.

            De nada, porém, valeu tanto esforço. O pássaro Roca tinha ouvido os pios do filhote e vinha pelos ares como um ciclone de penas.

            – Fujamos! – gritou o senhor de Munchausen ao avistá-lo, e botou-se… Foi uma debandada geral. Voaram todos atrás do barão, como veados. Até a pobre dona Benta teve de esquecer os sessenta anos, o reumatismo e a pontada, para só pensar na fuga. Arregaçou a saia, botou a dentadura no bolso e virou veado também. Chegou ao castelo mais morta que viva, pondo a alma pela boca.

            – Benza-me Deus! – dizia ela. – Isto nunca foi vida…

            O barão e o menino subiram incontinenti à torre para espiar o pássaro Roca por uma luneta. Viram-no pairar sobre o desfiladeiro e descer como flecha sobre o ovo. Ao dar com o filhote já nascido, sentiu grande alegria. Não desconfiou nem sequer daquele bico amarrado, certo de que o pinto nascera assim…

 

7 – Melhor que o pó

            Dona Benta recolheu-se muito cedo aquela noite, depois de tomar um calmante, aconselhado pelo barão. Já os meninos deitaram-se tarde. Ficaram a ver troféus de caça e a ouvir da própria boca do barão aventuras espantosas que nenhum dos seus livros conta. No pedaço mais interessante, porém, foram interrompidos pela chegada dum mensageiro vindo da Alemanha no galope, com carta do imperador. O barão leu-a e disse, muito aborrecido:

            – Que maçada! Tenho de partir incontinenti para meu país, que acaba de declarar guerra aos turcos. O imperador está aflito pela minha volta.

            – E nós? – perguntou Pedrinho.

            – Vocês podem ficar no castelo quanto tempo quiserem. Darei ordem aos criados para que os tratem como donos.

            Disse e foi arrumar as malas. Minutos depois reapareceu para despedir-se.

            – Até a volta, meninada! Quando a senhora dona Benta acordar, digam-lhe que senti muito não me despedir dela, mas que estarei sempre às suas ordens, na Alemanha ou na Turquia.

            – Adeus, senhor barão! Volte logo…

            – Traga um turco para mim! – gritou Emília.

            No dia seguinte, quando dona Benta acordou e soube da inesperada partida do barão, sentiu de novo a pontada no peito.

            Voltou a lamentar-se.

            – Que será de mim agora, neste castelo sem dono, entre criados estranhos e com um vizinho feroz como o pássaro Roca? Ah, meu Deus, por que me deixei levar pela cabeça duma criança como Pedrinho? Estou recebendo o merecido castigo…

            Os meninos ficaram inquietos. Naquele andar dona Benta acabaria doida. Era melhor levarem-na imediatamente para casa, apesar de tanta coisa que poderiam fazer naquele maravilhoso castelo do barão.

            – Maçada! – exclamou Pedrinho aborrecido. – Andar com velha é isto. Nunca mais me meto em outra.

            E voltando-se para dona Benta, de mau humor:

            – Pare com a lamentação, vovó! Assim como eu a trouxe cá, levo-a para o sítio outra vez. Pare de torcer as mãos, que já me está deixando nervoso…

            Tirou do canudo uma pitada de pó de pirlimpimpim e, sempre com maus modos, deu-lha a cheirar. Dona Benta cheirou o pó avidamente, como se cheirasse o pó da salvação. Com espanto geral, porém, o pó não fez efeito. Outra dose, e nada.

            Pirlimpimpim perdera a força… Molhara-se na água do mar quando Pedrinho entrou por ele adentro para acudir o burro. Pirlimpimpim agüenta tudo, menos sal.

            E agora? O burro ninguém sabia dele, ficara na praia transformado em esfinge. A caleça tinha seguido com o barão para a Alemanha. Como voltar para casa? Estava Pedrinho coçando a cabeça, atrapalhado com o terrível problema, quando um rumor de asas se fez ouvir lá fora. Correu à janela e empalideceu. O pássaro Roca vinha vindo, veloz como um avião!…

            – Lá vem a peste!… – exclamou o menino, mais pálido ainda.

            – Socorro! – berrou dona Benta, feito uma louca. – Acudam!…

            O momento era dos mais terríveis. Ninguém sabia o que fazer. Todos corriam dum lado para outro, completamente desorientados. E aquilo acabaria muito mal se Emília não viesse como uma das suas grandes idéias.

            – Fechem os olhos com toda a força! – berrou ela dando o exemplo.

            Instintivamente todos obedeceram. Fecharam os olhos, com toda a força, como a gente faz nos sonhos quando vai caindo num precipício. Ficaram um minuto assim, Quando de novo abriram os olhos… estavam no sítio outra vez, perto da porteira! Dona Benta respirou aliviada e assoprou várias vezes, como quem está ressuscitando, depois disse aos meninos:

            – Não contem nada a tia Nastácia para que ela não pense que estou caducando. Vamos fingir que estivemos na casa do compadre Teodorico.

            Todos fizeram cara de quem vinha chegando da casa do compadre Teodorico, abriram a porteira e entraram. Mas deram logo com a preta de mãos na cintura, plantada na varanda, sacudindo a cabeça com ar de quem está ciente de tudo.

            – Sim, senhora! – disse Nastácia, assim que dona Benta começou a subir a escadinha. – Já sei que encontrou o coronel Teodorico muito bem obrigado, não é?    Dona Benta armou a boca para pregar uma mentirinha, com um ar muito desconchavado, porque a pobre nunca havia mentido em toda a sua vida. A diaba da negra, porém, impediu-a disso.

            – Não diga, sinhá – resmungou. – Já sei tudo. O burro veio na frente e me contou a história inteirinha, tintim por tintim…

            A pobre dona Benta, muito passada, baixou os olhos e seguiu para o seu quarto sem dizer coisa nenhuma…

            No dia seguinte chegou da cidade uma carta de dona Antonica chamando Pedrinho.

            – Que maçada, vovó! – exclamou ele aborrecidíssimo. – Justamente agora que temos o burro falante e tenho de ir embora!…

            Mas que remédio? Quem o governava era dona Antonica, e portanto teve de arrumar a bagagem para seguir no dia seguinte.

            No dia seguinte o cavalo pangaré foi arreado bem cedo. Às seis horas Pedrinho tomou o seu café com mistura e montou.

            – Adeus vovó! – exclamou antes de dar no cavalo a primeira lambada. – Adeus, Narizinho! Adeus, tia Nastácia! Adeus, Emília. Adeus, Faz-de-conta…

            – Adeus! adeus! – exclamaram todos, com os olhos úmidos.

            Lept!… Uma lambada só – de leve, e o cavalinho partiu…

            Antes, porém, que chegasse à porteira, Emília gritou-lhe que parasse.

            – Você esqueceu de despedir-se do Visconde, Pedrinho! Ele também é gente… O menino sofreou as rédeas.

            – Que idéia! Pois o Visconde não morreu, Emília?

            – Morreu mas não acabou ainda! – replicou a boneca, correndo na direção dele com o resto do Visconde mão. Despeça se deste toco, que é bem capaz de virar gente outra vez.

            Pedrinho riu-se e, para não descontentar a boneca tornou-lhe das mãos o toco de sabugo e fingiu que lhe dava um beijo. Em seguida deu outra lambada no cavalinho – desta vez com bastante força, e partiu no galope. Não queria que a boneca visse duas lágrimas que já iam pingando dos seus olhos…

 

1931.

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