Tia Marina peça 1

(Nota: Até os 6-7 anos, Leonardo e Bruno só tiveram uma tia disponível, vizinha. Todos os outros moravam longe. Era uma tia especial. Não porque fosse a única, porque exclusividade não é virtude mas circunstância. Era especial porque era exatamente como era. Essas coisas não precisam de explicação. Era mais do que especial, era imprescindível. E assim ficou sendo até hoje. Depois que ela se mudou para São Paulo, homenageei-a em duas pecinhas de fantoche (os teatrinhos viraram rotina dentro dos aniversários). Aí vão as duas. A segunda peça é uma mostra do que fazem os povos quando sob o tacão de cavalgaduras: debocham da besta-fera a portas fechadas.)

marina

 

O BRIGADEIRO INVISÍVEL

PERSONAGENS: TIA MARINA, LEONARDINO, BRUNINO, TOURO (o cachorro), SACI, CUCA, IARA.

TIA MARINA: Bom dia! Boa tarde! Boa noite! Como vão vocês? Eu sou a tia Marina. Vim a Curitiba, para visitar filhos, sobrinhos, e encontrar o meu coração. Porque, mesmo morando em São Paulo, meu coração fica em Curitiba. Preciso encontrar o Leonardino e o Brunino, meus sobrinhos muito levados. Quero contar para eles as histórias que li quando fiz uma pesquisa na USP. Leonardino! Brunino! Onde estão vocês? Acho que estão aqui. (abaixa-se) Ai, minha coluna! Não posso fazer estes movimentos extravagantes. Leonardino! Brunino!

LEONARDINO: Quem que tá chamando?

BRUNINO: É a tia Marina!

TIA MARINA: Olá, sobrinhos! Quero contar para vocês umas histórias que li.

LEONARDINO: Conta, então…

TIA MARINA: A primeira história é a do Saci. Conhecem o Saci?

BRUNINO: O Saci é um pretinho que tem uma perna só.

LEONARDINO: E tem um chapeuzinho chamado carapuça.

BRUNINO: E fuma cachimbo.

LEONARDINO: E gosta muito de enganar as pessoas.

TIA MARINA: Credo! Vocês contaram tudo que eu ia contar! Mas de uma coisa vocês não falaram.

BRUNINO: O quê?

TIA MARINA: O Saci, quando está cansado, senta numa pedra e cruza as pernas.

LEONARDINO: Oh, tia Marina. Qual perna que ele cruza em cima da outra?

TIA MARINA: A da direita ele deixa esticada e depois ele cruza ela em cima dela.

LEONARDINO: Eu vou achar o Saci. E vou conversar com ele.

TIA MARINA: Não vai conseguir.

LEONARDINO: Eu vou fazer uma armadilha e, quando ele for pegar a isca, fica preso.

BRUNINO: E o que você vai usar como isca? Uma minhoca?

LEONARDINO: Não, seu burro. Um prato de brigadeiros.

TIA MARINA: E vocês já ouviram falar da Cuca?

LEONARDINO: A Cuca é uma bruxa.

BRUNINO: Mora numa gruta.

LEONARDINO: É feia como a fome.

BRUNINO: E carrega as crianças pra cozinhar na panela e comer assadas com cebolas.

TIA MARINA: Puxa, mas vocês já sabem de tudo. Só não sabem de uma coisa.

BRUNINO: O quê?

TIA MARINA: A Cuca pensa que é bonita. Ela acha que é uma princesa encantada. Se alguém der um espelho pra ela ela leva um susto e cai morta.

BRUNINO: Eu vou pegar um caixote e fazer uma armadilha e quando a Cuca for pegar a isca eu prendo ela.

LEONARDINO: E o que você vai usar de isca? Brigadeiros?

BRUNINO: Não, seu burro. Um espelho.

TIA MARINA: E o que vocês sabem da Iara?

LEONARDINO: A Iara é uma sereia que tem pernas em vez de rabo.

BRUNINO: Atrai os homens bonitos para dentro dágua e eles morrem afogados.

LEONARDINO: E anda pelada.

TIA MARINA: Mas tem uma coisa que vocês não sabem.

LEONARDINO: O quê?

TIA MARINA: A Iara não sabe que, se ela ouvir uma música, ela perde a voz. E perdendo a voz, perde o encanto.

LEONARDINO: Vou fazer uma armadilha e pegar a Iara.

BRUNINO: Que isca vai usar? Um espelho?

LEONARDINO: Não, seu burro. Um radinho de pilha.

TIA MARINA: E o que sabem vocês do Lobisomem?

LEONARDINO: É um homem lobo.

BRUNINO: Vira lobo na sexta-feira.

LEONARDINO: Mata bichos e gente pra chupar o sangue.

BRUNINO: Depois, desvira e vira gente de novo.

LEONARDINO: E se a gente fere o Lobisomem…

BRUNINO: …o homem que é ele fica com a mesma ferida.

TIA MARINA: Mas eu sei de uma coisa que vocês não sabem. O que o Lobisomem gosta de comer?

LEONARDINO: Eu sei, Tia Marina. Brigadeiro!

TIA MARINA: Não. Cocô de galinha!

AMBOS: Aaahhhh!

TIA MARINA: Então, já sabem. Se quiserem fazer uma armadilha pro Lobisomem… devem usar…

AMBOS: Cocô de galinha!

TIA MARINA: Bem. A tia Marina vai lá dentro, pegar uma surpresa pra vocês. Esperem que eu já volto. (sai)

LEONARDINO: Brunino, eu estou com um sono!

BRUNINO: Eu também. Vamos dormir um pouco (dormem).

TIA MARINA: (voltando) Oh, que pena! Trouxe brigadeiros para eles mas eles estão dormindo. Bem, deixo os brigadeiros aqui e vou visitar as minhas amigas. Até logo pessoal! (sai)

(entra um chachorro; come os brigadeiros; desaparece)

LEONARDINO: (acordando) Brunino. Acorda.

BRUNINO: Olha aqui, Leonardino. Dois brigadeiros.

LEONARDINO: Oba. Um pra mim, outro pra você.

VOZ: Auau! Cuidado! Auau! Não comam estes brigadeiros!

LEONARDINO: Quem falou?

BRUNINO: Quem latiu?

VOZ: Fui eu. Auau! O Touro! Acho que fiquei invisível. Acho que foi o prato de brigadeiros da tia Marina, eu comi quase tudo! Auau!

BRUNINO: Oba! O brigadeiro é mágico. O Touro ficou invisível e a gente entende a fala dele. Vamos comer.

LEONARDINO: Vamos ficar invisíveis e apanhar o Saci e a Cuca e a Iara e o Lobisomem. (comem; desaparecem; aparecem junto com Touro)

TOURO: Não falei que o brigadeiro faz ficar invisível! Vejam. Aí vem a tia Marina. Auau!

BRUNINO: Vamos dar um susto nela. Eu vou puxar a saia dela.

LEONARDINO: Eu vou dar um beliscãozinho na canela dela.

TOURO: E eu vou dar uma fungada no pescoço dela.

TIA MARINA: (entrando) Meninos! Leonardino! Brunino! Onde estão todos. Ah, mas o prato de brigadeiro está vazio. (eles brincam com ela) Jesus! Socorro! Todo mundo, ajuda, socorro! Acho que estou lendo demais. Ou então fiquei maluca de morar em São Paulo. Vou já contar pro Floriano. Socorro! Socorro! (sai; eles ficam rindo)

LEONARDINO: Muito bem! Precisamos aproveitar que nós dois estamos invisíveis, pra procurar o Saci, a Cuca, o Lobisomem e a Iara. Vou fazer um Museu de coisas que não existem.

BRUNINO: Mas, se não existem, como vão ficar no Museu?

TOURO: Auau! Existem na imaginação e não existem na realidade. Se não existem na realidade, não são reais, mas, como o que existe na imaginação, também existe, tem que ser real, pertence a esta categoria da realidade superior que Tomás de Aquino chamou realitas realitatis suprematis, retomando a teoria de Aristóteles que dizia que real e supremo é o que Kant denominou de imprescindível, isto é, um osso bom pra cachorro. Tenho dito, au au!

LEONARDINO: Quieto, Touro.

BRUNINO: Quieto, Touro.

LEONARDINO: Vamos embora.

TODOS: (canto)

Um, dois, três, um, dois, três, um, dois, três…

Nós somos os três mosqueteiros,

Au au!

Estamos em busca de aventura.

Au au!

Somos muito fortes e ligeiros.

Au au!

Com muita coragem e bravura.

Auuuuuhhhhhh!

BRUNINO: Será que neste mato tem Saci?

LEONARDINO: Aqui tem bastante bambu.

BRUNINO: Vamos nos esconder aqui. Quem sabe o Saci aparece. (escondem-se)

SACI: (entra; canto)

Eu sou pretinho que nem um tição,

Eu gosto de muita vadiação,

Eu gosto de muita perturbação,

E adoro fazer má-criação.

Moleque como eu

Nunca vi.

Eu sou um danado,

Eu sou o Saci.

Eu sou pretinho que nem um carvão… (sai)

LEONARDINO: Brunino, acho que quero ficar aqui. Quando ele passar, eu falo com ele. (entra o Saci; os dois se encontram)

SACI: Socorro! Uma aparição!

LEONARDINO: Socorro! Uma aparição!

SACI: Como é que você me vê, se eu sou invisível?

LEONARDINO: Como é que você me vê, se eu sou invisível?

SACI: Acho que é um papagaio disfarçado de gente. Tudo que eu falo, ele repete.

LEONARDINO: Não, Saci. Eu acho que estou te vendo porque fiquei invisível.

SACI: Então, é isto. A gente está se vendo porque é invisível.

TOURO: O essencial é invisível aos olhos. Auau!

BRUNINO: Quieto, Touro!

TOURO: Não se pode mais fazer poesia no mundol Auau!

SACI: Muito bem. Já que estamos os três invisíveis, proponho a que a gente viva uma aventura.

AMBOS: Oba, oba!

TOURO: Não se esqueçam de que eu estou invisível também. Auau! O quê que a gente vai fazer? Visitar um museu?

LEONARDINO: Ora, Touro. Por que museu?

TOURO: Lá está cheio de ossadas. Ossos de baleia, de dinossauros, au, de cotilossauros, de pterossauros, terapsídeos, rincocéfalos, loricados, monotremados, desdentados, ungulados, auau, e nenhum deles é osso duro de roer.

BRUNINO: Quieto, Touro. Você vai onde a gente for.

LEONARDINO: Isto mesmo. Você é nosso cão de guarda.

TOURO: Auau. São os ossos do ofício.

LEONARDINO: Eu já sei. Nós vamos na gruta da Cuca.

BRUNINO: Oba, então vamos, que eu quero conhecer a Cuca.

TODOS: (canto)

Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro…

Nós somos os quatro mosqueteiros,

Au au!

Estamos em busca de aventura.

Au au!

Somos muito fortes e ligeiros.

Au au!

Com muita coragem e bravura.

Auuuuuhhhhhh!

CUCA: (entra; canto)

Sou eu que moro aqui nesta baiuca.

Uns dizem que eu estou maluca.

E outros falam que eu sou caduca.

Eu sou a terrível Cuca:! (sai; entram os três; Touro fica de fora)

SACI: Aqui está a casa da Cuca. Não toquem em nada. Se vocês encostarem a mão em alguma coisa, ficam grudados e viram pedra e ela vem e … nhoc!

BRUNINO: Come a gente?

SACI: Faz molho de nhóqui. Tem mania de fazer caldeirão de nhóqui. E usa criança assada no molho.

LEONARDINO: E olhem como o caldeirão é grande!

SACI: Não encostem a mão nele. Esse caldeirão se chama Lelé.

BRUNINO: Ah! Então esse é que é o famoso Lelé da Cuca!

LEONARDINO: Brunino! Cadê o espelho?

BRUNINO: Ih, esqueci o espelho. Onde é que nós vamos encontrar um espelho agora?

SACI: Eu sei. Na gruta da Iara. Ela tem uma porção de espelhos. Vive se olhando e penteando os cabelos.

LEONARDINO: Então, vamos na gruta da Iara.

CUCA: (entrando) Ahá! Três franguinhos na minha gruta, já em torno do Lelé. É só acender o fogo e teremos um delicioso molho de nhóqui. Ah, nhóqui, meu prato preferido. Mas… Saci, o que está fazendo aqui?

SACI: Calma, dona Cuca. Eu trago notícias do seu namorado.

LEONARDINO: E quem é o namorado da Cuca?

SACI: O Cuco. Aquele que mora no palácio do Relógio.

CUCA: Saci, Saci! Estou desconfiada dessa sua história do Cuco. Ele sempre manda notícias e nunca aparece.

SACI: Ele é muito ocupado. Imaginem que ele tem que indicar as horas o tempo inteiro. Disse que hoje, depois que cantar as doze badaladas, virá sem falta ver a senhora dona Cuca.

CUCA: Aiai, Saci. Quando você falas do Cuco eu fico ficando todinha arrepiada. Será que ele vai se-me achar-se-me bonita?

SACI: Quando ela fica apaixonada, começa a falar tudo errado.

CUCA: Quê que vocês estão falando?

SACI: Nada, nada.

CUCA: Eu perguntei, será que ele, o Cuco, vai se-me achar a sua Cuca bonita?

VOZ DO TOURO: A senhora é muito mais bonita que a Moura Torta!

CUCA: Uai! Quem foi que falou?

LEONARDINO: Foi o Touro.

CUCA: Ui, meu Deus, socorro, socorro! Eu tenho horror de touro. A coisa que eu mais detesto no mundo é touro. Socorro!

BRUNINO: Calma, dona Cuca. O Touro é um cachorro.

CUCA: Cachorro! Ai, meu diabo! Socorro! Eu tenho horror de cachorro. A coisa que eu mais detesto no mundo, depois de touro, é cachorro. E a coisa que eu mais detesto no mundo, sobre todas as coisas, é um cachorro chamado Touro.

SACI: Calma, dona Cuca. O Touro é bonzinho. Ele é um poeta filósofo e um filósofo poeta.

TOURO: (entrando) Como vai, dona Cuca. Não tenha medo de mim, que eu sou bonzinho.

CUCA: Oh! Isto é que é um cachorro? Nunca tinha visto um, antes. Ah, que cachorro mais gentil! Que lindo! Que lindo que você és, meu lindo cachorrinho. Quero até se-te dar-se-te um beijo. Ah, se eu não se-me estivesse-se-me comprometida com o Cuco.

TOURO: A senhora sabe a receita do nhóqui genovês?

CUCA: Senhora, não! Senhorita! Ah, você também sabe receitas… aiai! Que triste que é ter-se que se-ser-se fiel. Não posso trair o Cuco. E vocês dois, fiquem sabendo, não jogo vocês na panela… porque vocês estão com o Toirinho. Aiai!

SACI: Dona Cuca, na verdade temos que visitar a Iara, para conseguir um presente que o Brunino quer dar para a senhora.

CUCA: Ih, vocês vão na casa daquela sirigaita? Daquela horrorosa? Daquele bicho? Daquele bucho? Daquele lixo?

SACI: Bem, na verdade, nós íamos lá pra conseguir um presente pra senhora, mas não sei se ainda vamos precisar do presente.

CUCA: Que presente que era?

BRUNINO: Um espelho.

CUCA: Ih, espelho. Eu já tenho mais de mil Tenho uma gruta cheia de espelhos.

TOURO: Auau. E a senhora já se olhou?

CUCA: Senhora, não! Senhorita, Toirinho doirado. Já se-me olhei-se-me a mim muitas vezes. Adoro se-me olhar-se-me-se.

LEONARDINO: Mas… quer dizer… quando a senhora se olhou pela primeira vez… como foi que foi?

CUCA: Oh, foi maravilhoso. Eu era bem igualzinha ao que eu imaginava. Uma boca linda, um nariz maravilhoso, dois olhos divinos, as orelhas… oh, que orelhinhas dignas de uma estátua…

TOURO: …de Pablo Picasso!

CUCA: Você acha? Aiai! Mas, como eu dizia, na primeira vez que se-me olhei-se-me-se no espelho, fiquei horas paralisada, me admirando. Diga, Saci, o Cuco é bonito como eu?

SACI: Bem, ele tem uma garganta vermelhinha.

CUCA: Aiai! Meu Cuco da Cuca.

SACI: Bem, dona Cuca. Já que a senhora tem espelho, vamos visitar a Iara.

CUCA: Eu também quero ir. Não gosto daquela monstra horrorosa, mas quero fazer companhia ao… Toirinho.

TOURO: E no caminho, eu vou falar a receita do nhóqui.

CUCA: Oh, vai se-me ensinar-se-me a mim a receita? De que é o molho?

TOURO: Só de vegetais. Legumes e verduras.

CUCA: Que molho mais sem graça. Não é de carne de criança?

TOURO: Não! Auau!

SACI: Vamos gente, que está ficando tarde.

(saem, cantando)

Um, dois, três, quatro, cinco, um, dois, três, quatro, cinco…

Nós somos os cinco mosqueteiros,

Au au!

Estamos em busca de aventura.

Au au!

Somos muito fortes e ligeiros.

Au au!

Com muita coragem e bravura.

Auuuuuhhhhhh! (saem)

IARA: (entra) Eu sou a linda e deslumbrante Iara

Eu sei que a minha beleza é rara.

La la laiá la

La la laiá.

Eu fico a pentear os meus cabelos

Que caem como algas em novelos.

La la laiá la

La la laiá.

Depois irei cantar na pedra verde da cascata, pra atrair o marinheiro incauto, que morrerá afogado no meio dos meus cabelos de musgos. Oh, onde foi que deixei meu pente de ouro? Preciso encontrá-lo. Devo ter esquecido lá na cascata. (sai; entram os cinco)

SACI: Cuidado. A Iara é bonita mas é muito perigosa.

BRUNINO: A tia Marina disse que se ela ouvir uma pessoa cantar, ela perde a voz.

LEONARDINO: E perdendo a voz, perde o encanto.

SACI: Então, deixem comigo. Eu vou cantar assim: Atirei o pau no gatoto.

TODOS: Uau, eh, não, ih, não, essa música, não.

LEONARDINO: Eu sei o que eu vou cantar: Toda essa gente se engana, ou então finge que não vê que eu nasci pra ser um superbacana!

TODOS: Eh, não, ih, essa música é muito moderna!

BRUNINO: Então, canto eu: dorme nenem que a Cuca vai pegar…

CUCA: Não, não, essa música boba que fala de mim, não. Além do mais, agora não vou mais querer pegar criança para fazer nhóqui. Vou fazer o molho que o Toirinho… o Toirinho, aiai!, vai se-me ensinar-se-me a mim.

TOURO: Então, canto eu.

TODOS: E o que você vai cantar?

SACI: Escondam-se todos que a Iara já vem chegando. Então, combinado, Touro. Quando eu der um assobio, você canta. (escondem-se)

IARA: (entrando) Estranho! Parece que eu ouvi ruídos aqui dentro. Ora, que bobagem. Quem teria coragem de entrar na gruta da Iara, a Temível? Bem, vou pentear os meus cabelos.

SACI: (assobio)

TOURO: Toreador, en garde!

Toreador, toreador!

Et songe bien et songe en combatant…

IARA: Oh, que coisa horrível! Quem canta? De onde vem esta voz demoníaca?

CUCA: Oh, que maravilhoso! Ele faz nhóqui, sabe poesia, filosofia e ainda canta óperas! Toiro, meu amor, eu quero se-me casar-se-me-se com você. Você se-me aceitas-se-me?

TOURO: Qu’un oeil noir te régarde!

Et que l’amour t’attend,

Toreador,

L’amour, l’amour t’attend.

IARA: Oh, demônios invisíveis! Eu sinto que estou perdendo o poder! Parem! Parem com esta música!

TODOS: Toreador, en garde

Toreador, toreador…

IARA: Ai! Chega, chega! Eu já perdi o poder. Socorro! Socorro! Eu estou com medo.

SACI: Vamos sair, pessoal! Ela agora é fraquinha que nem uma barata.

IARA: Parem! Quem são vocês?

LEONARDINO: Eu sou o Leonardino.

BRUNINO: Eu sou o Brunino.

TOURO: Eu sou o Touro.

SACI: E eu sou o Saci.

IARA: Oh, Saci. Como você é bonitinho. Sempre ouvia minhas irmãs falarem de você mas não imaginava que você fosse tão fofinho, charmosinho, bonitinho, engraçadinho, gostosinho…

SACI: Ai, pare dona Iara, pare, porque eu só tenho uma perna só e não paro de tremer. Isto é covardia!

IARA: Ai, louquinho, vou até te dar um beijo. (beija o Saci e ele desmaia) E ela, quem é?

LEONARDINO e BRUNINO: É a Cuca!

IARA: Credo, como ela é feia!

CUCA: Credo, como ela é feia!

IARA: Tenho até medo!

CUCA: Tenho até medo!

IARA: Nunca vi uma criatura tão horrorosa!

CUCA: Nunca vi uma criatura tão horrorosa!

TOURO: Foi diante de uma cena destas que o grande Einstein bolou a teoria da Relatividade. Auau!

SACI: (acordando) Onde estou?

IARA: Aqui, Sacizinho. Prepare-se para cair nos meus braços. Vou me casar com você agora mesmo. Aqui e agora!

SACI: Credo! Não vai nem fazer enxoval?

IARA: Pra que enxoval se eu ando pelada? Vamos nos casar e ter uns trinta filhinhos.

SACI: E vão ser mulatinhos com cabelos verdes…

IARA: E vão viver nadando nos rios e lagoas…

SACI: E vão ter três pernas, duas da mãe e uma do pai…

LEONARDINO: Então, você vai ficar?, Saci.

SACI: Quê que eu posso fazer? Sou solteirão há muitos anos mas quem pode resistir à Iara? Se ela perdeu os encantos, deve ter outros encantos escondidos…

TOURO: Acho que não estão tão escondidos assim. Auau!

LEONARDINO: Então, nós outros vamos embora.

BRUNINO: E não vamos ver o Lobisomem?

SACI: O Lobisomem fica para outra vez. Passem por aqui no próximo ano e nós iremos à procura do Lobisomem, do Curupira, do Boitatá e da Mula-sem-cabeça. E quem sabe já levaremos um Sacizinho no colo.

IARA: Ou uma Iarinha.

CUCA: Ah, eu também quero casar. E já que o Cuco não aparece, Touro, Toirinho, eu quero se-me casar-se-me-se com você agora mesmo.

BRUNINO: Você aceita?, Touro.

TOURO: Auau! Resistir, quem há-de? Vocês viram o tamanho do caldeirão dela? O Lelé da Cuca! Já pensaram na quantidade de comida ela vai fazer pra mim? Auau! Primeiro, viver, depois, filosofar. Primum, vivere, deinde, filosofare. E como dizia Jesus da Galiléia, o Touro que é Touro não bobéia. Au! Eu aceito casar com a Cuca.

CUCA: Oh, que maravilha! Sou a mulher mais feliz do mundo. Vou se-me casar-se-me e terei filhos.

SACI: De rabo!

IARA: De orelha grande!

LEONARDINO: De quatro pernas!

TOURO: De focinho!

CUCA: Isto mesmo, de rabo, orelha grande, focinho e quatro pernas. Não serão maravilhosos? Oh, maravilha das maravilhas! (canta)

Sou feliz, sou feliz,

Vou se-me casar-se-me

Com quem eu sempre quis.

SACI: É, Touro, você tinha razão. Einstein é que estava certo.

CUCA: Bem, vamos à procura de um juiz.

IARA: Isto mesmo. E a Cuca e o Touro vão ser os nossos padrinhos. Vou fazer as pazes com a Cuca.

CUCA: E a Iara e o Saci serão os nossos padrinhos.

LEONARDINO: Ah, eu não vou com vocês. Estou com sono.

BRUNINO: Eu também estou com muito sono. Vamos dormir?, Leo.

LEONARDINO: Vamos. Até outra vez! Adeus!

TODOS OS OUTROS: Adeus! Adeus! (todos se vão, menos Leonardino e Brunino, que dormem; volta o Touro)

TOURO: Auauau!

LEONARDINO: Acorda, Brunino. O Touro voltou. Touro, então você não se casou com a Cuca?

TOURO: Auau!

BRUNINO: Uai! Você não fala mais?

TOURO: Auauau! (entra a tia Marina).

TIA MARINA: Meninos, ainda bem que acordaram. Vejam os brigadeiros que eu trouxe para vocês! Oh! Onde estão os brigadeiros? O Touro comeu tudo.

TOURO: Auau!

LEONARDINO: Não, tia Marina. Ele comeu quase tudo mas ficaram dois no prato. Eu comi um e o Brunino comeu o outro. E nós três ficamos invisíveis.

BRUNINO: E visitamos o Saci e a Cuca e a Iara.

LEONARDINO: E o Touro cantou a ópera e a Iara perdeu a voz e o poder.

BRUNINO: E o Touro se casou com a Cuca.

LEONARDINO: E a Iara se casou com o Saci.

BRUNINO: E vimos o Lelé da Cuca.

LEONARDINO: E a Cuca não vai mais comer criança.

TIA MARINA: Ora, que confusão é esta? Acho que vocês andaram sonhando.

BRUNINO: É verdade, tia Marina. Não é Touro?

TOURO: Auau!

LEONARDINO: Brunino, não adianta. Ninguém vai acreditar. Tia Marina, nós comemos o brigadeiro e ficamos invisíveis.

BRUNINO: E como nós ficamos invisíveis, vimos tudo o que é invisível. E o Touro disse que o essencial é invisível aos olhos. Não é?, Touro.

TOURO: Auau!

TIA MARINA: Quer dizer que o brigadeiro que eu faço faz ficar invisível? Oba, eu vou montar uma confeitaria. Aqui em Curitiba, é claro. E quem quiser brigadeiro, paga antes de comer.

BRUNINO: Por quê?

TIA MARINA: Se não, como que eu vou cobrar, se o sujeito fica invisível. Não é?, Touro.

TOURO: É isto mesmo. Auau, auau!

OS MENINOS: Viu?, tia Marina. O Touro falou! O Touro falou!

TIA MARINA: Cruz credo! (desmaia)

TOURO: Auuuhhhh!

(barulhos e confusão; gritos e palmas; cortina)

janeiro de 1978.

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