O SACI
Capítulos 17, 18, 19 e 20
17 – Meia-noite
Nesse ponto da prosa a flor que servia de relógio abriu-se toda.
— É hora! — exclamou o saci. — Estamos justamente no meio da noite.
Apesar de valente, Pedrinho não deixou de sentir um certo arrepio pelo corpo. Primeira vez na vida em que ia passar uma noite inteira na mata — e não seria uma noite comum, pelo que dizia o saci.
— Não se arreceie de coisa nenhuma. Deixe tudo por minha conta, que nada de mal há de acontecer — disse o saci, correndo os olhos em redor como em procura de alguma coisa. — Venha comigo. Há ali uma peroba minha conhecida, onde encontraremos o melhor dos refúgios.
De fato. Na tal peroba havia um oco a doze pés acima do chão, muito próprio para esconderijo. Dentro dele os dois acomodaram-se à vontade e de modo a tudo poderem ver sem perigo de serem vistos.
— Muito bem — disse o menino — mas só quero saber como poderei enxergar qualquer coisa de noite, dentro desta floresta que de dia já é tão escura.
— Para tudo há remédio — foi a resposta do saci. — Espalharei pelas árvores vizinhas centenares de lanternas vivas, de modo que você enxergará como se fosse dia. Mas antes é preciso que coma estas sete frutinhas vermelhas — concluiu apresentando ao menino um punhado de frutinhas do tamanho de amoras bravas.
Pedrinho desconhecia aquelas frutas e foi com uma careta que mordeu a primeira, tão amarga era. Mas comeu as sete, e logo em seguida sentiu uma deliciosa tonteira invadir lhe o corpo, deixando-o num esquisito estado de consciência jamais sentido. Era como se estivesse dormindo acordado.
Enquanto isso, o saci repetiu em tom diferente o assobio com que chamara o serra-pau; mas dessa vez não veio serra-pau nenhum, sim uma enorme quantidade de vaga-lumes, dos grandes e dos pequenos. Vieram e foram pousando nas folhas e galhos das árvores vizinhas, como se algum invisível guia lhes estivesse a indicar os lugares. O coração da floresta clareou num círculo de cem metros de diâmetro, como se fosse batido pelo luar da lua cheia.
Pedrinho estava a gozar o espetáculo da floresta iluminada pelas lanterninhas vivas, quando surgiu na claridade o primeiro saci. E logo outro e outro, e todo um bando de mais de cem. Começaram a pular, a dançar e a conversar numa linguagem que o menino muito sentiu não entender.
— Estão combinando as travessuras que vão fazer durante a noite. Daqui a pouco todos partem, só ficando os pequeninos que ainda não podem correr mundo — explicou o saci cochichando-lhe ao ouvido.
Pedrinho enxergou um de cara chamuscada — com certeza o que fora vítima da explosão do pito do tio Barnabé. Mas os sacis foram se dispersando, de modo que ao cabo de alguns minutos só se viam por ali os pequeninos como camundongos.
— Para onde foram? — perguntou Pedrinho.
— Oh, eles espalharam-se por toda parte. Ainda está por haver um lugarzinho onde saci não entre.
— Até nas garrafas… — disse o menino, sorrindo.
18 – Saída dos sacis
Nem em sonhos Pedrinho jamais esperou que pudesse observar um quadro mais curioso. Aqueles minúsculos capetinhas eram as mais travessas e irrequietas criaturas que se possam imaginar. Não paravam um só instante. Cabriolavam nos musgos do chão, pulavam como pulgas, dançavam, inventavam mil travessuras. E tudo faziam sem por um só instante tirarem o pitinho da boca.
Deram-se cenas muito engraçadas. Três deles ficaram muito atentos, de narizinho para o ar, observando um morcego que despreocupadamente comia frutinhas de uma enorme figueira. Depois de cochicharem entre si, treparam à figueira, com todas as cautelas para não assustar o morcego. Foram por trás dele e, de repente — zás!… pularam-lhe ao lombo, como perfeitos cow-boys! O morcego levou um grande susto e começou a corcovear no ar, em voos tontos, enquanto os três cavaleiros, firmes na sela como carrapatos, davam assobios agudíssimos num grande contentamento.
Outro havia trepado a um arbusto e descoberto um ninho de beijaflor com três ovinhos. Imediatamente deu brado de alarma, chamando os companheiros. Reuniu-se um bando em redor do ninho, cujos ovos foram retirados e levados para o chão. Lá acenderam uma minúscula fogueirinha e assaram os ovos e os comeram com grande alegria e gulodice.
E quantas outras travessuras não observou Pedrinho! Os que agarraram um pobre caramujo pelos chifrinhos e fizeram prodígios para arrancá-lo da casca. Os que se divertiam em caçar vaga-lumes, matá-los e esfregar pelo corpo a substância fosforescente que os torna luminosos. Os que cavavam a terra, descobriam minhocas, emendavam três e quatro para fazer uma corda de pular…
Pedrinho estava completamente absorvido naquele curioso espetáculo; e assim passaria a noite, se em certo momento o saci não o puxasse para o fundo do oco.
— Cuidado! — disse ele. — Estou sentindo catinga de lobisomem. Meu faro nunca se engana…
19 – Lobisomem
Nem bem acabara o saci de pronunciar estas palavras e Pedrinho notou grande rebuliço entre os sacizinhos. Parece que também pressentiram qualquer coisa, pois largaram das brincadeiras e desapareceram na floresta, como por encanto.
Era tempo. O mato começou a estalar, como se algum animalão por ele viesse rompendo, e por fim surgiu na clareira a carantonha sinistra de um lobisomem. Parou, farejou o ar como se estivesse sentindo cheiro de carne humana. O saci, porém, tivera a precaução de emitir um certo cheirinho a enxofre, e isso iludiu o lobisomem, que continuou o seu caminho e passou. O cheiro a enxofre disfarça o da carne humana, explicou mais tarde o saci.
Apesar do medo que sentira, Pedrinho pôde notar que o monstro tinha a pele virada, isto é, o pelo para dentro e a carne para fora — uma coisa horrível! No mais, era um perfeito lobo, embora de dimensões muito mais avantajadas.
Assim que o lobisomem deixou a clareira, o menino respirou um ah! de alívio, e pediu o saci que lhe contasse alguma coisa desses monstros.
— Dizem — respondeu o saci — que quando uma mulher tem sete filhos machos, o sétimo vira lobisomem na noite das sextas-feiras. Sai então pelos campos, invade os galinheiros (onde come um produto das galinhas que não é o ovo) e também assalta e devora os cães e as crianças que encontra pelo caminho. Se alguém ataca um lobisomem e corta-lhe uma das patas, ele vira imediatamente no homem que é — e esse homem fica por toda a vida aleijado do membro correspondente à pata cortada.
Pedrinho não resistiu à tentação de ver de perto as pegadas do monstro e apesar das advertências do saci saiu do oco para examinálas à luz de vaga-lume. Mas não teve tempo. Assim que saiu do oco, ouviu um estranho rumor ao longe, seguido do agudo assobio do saci chamando-o. Voltou precipitadamente.
— Que há? — indagou.
O saci, que também parecia amedrontado, puxou-o bem para o fundo do esconderijo, murmurando:
— A mula-sem-cabeça!
20 – A Mula-sem-cabeça
A mula-sem-cabeça!
Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o apavorava mais que esse estranho e incompreensível monstro, a mula-semcabeça que vomita fogo pelas ventas. Muitas histórias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos do sertão e aos negros velhos, embora Dona Benta vivesse dizendo, que tudo não passava de crendice.
A galopada aproximava-se; já se ouvia o estalar dos arbustos que em seu desenfreado galopar a mula-sem-cabeça vinha quebrando. Súbito, parou.
— Vai mudar de rumo! — murmurou o saci com cara mais alegre.
E de fato foi assim. A mula retomou a galopada, mas em outra direção, e embora passasse por perto não chegou ao alcance dos olhos do menino.
— Que pena! — exclamou ele. — Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse monstro…
— Que pena? — repetiu o saci. — Que felicidade, deve você dizer! A mula-sem-cabeça é o mais sinistro duende que há no mundo; tem o dom de transtornar a razão de todos que a veem. Por isso é que, tive medo — não por mim, mas por você…
— Mas qual é a origem dessa mula?
— Uma história muito velha. Dizem que antigamente houve um rei cuja esposa tinha o misterioso hábito de passear certas noites pelo cemitério, não consentindo que ninguém a acompanhasse. O rei incomodou-se com isso e certa noite resolveu segui-la sem que ela o percebesse. No cemitério deu com uma coisa horrenda: a rainha estava comendo o cadáver de uma criança enterrada na véspera e que por suas próprias mãos, cheias de anéis, havia desenterrado! O rei deu um grito. Vendo-se pilhada, a rainha deu outro grito ainda maior — e imediatamente virou nessa mula-sem-cabeça, que desde aquele momento nunca mais parou de galopar pelo mundo, sempre vomitando fogo pelas ventas.
E foi assim que Pedrinho perdeu a única oportunidade que teve de ficar conhecendo pessoalmente o estranho monstro que tanto impressiona a imaginação dos nossos sertanejos.
Ela corre sem cessar, espalhando a loucura por onde passa. Não existe criatura, seja bicho do mato ou gente, que não prefira ver o diabo em pessoa a ver a tal mula-sem-cabeça. É horrenda!
— Mas como será que vomita fogo pelas ventas, se as ventas estão na cabeça e ela não tem cabeça?
— Também não entendo; mas é assim — disse o saci.