Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 35

 

29 – O sabiá na gaiola

         Lamentava-se na gaiola um velho sabiá.

         – Que triste destino o meu, nesta prisão toda a vida… E que saudades dos bons tempos de outrora, quando minha vida era um contínuo pular de galho em galho à procura das laranjas mais belas… Madrugador, quem primeiro saudava a luz da manhã era eu, como era eu o último a despedir-me do sol à tardinha. Cantava e era feliz…

         – Um dia, traiçoeiro visgo me ligou os pés. Esvoacei, debati-me em vão e vim acabar nesta gaiola horrível, onde saudoso choro o tempo da liberdade. Que triste destino o meu! Haverá no mundo maior desgraça?

         Nisto abre-se a porta da sala e entra o caçador, de espingarda ao ombro e uma fieira de pássaros na mão.

         Ante o espetáculo das míseras avezinhas estraçalhadas a tiro, gotejantes de sangue, algumas ainda em agonia, o sabiá estremeceu.

         E horripilado verificou não ser dos mais infelizes, pois que vivia e ainda não perdera a esperança de recobrar a liberdade de outrora.

         Refletiu sobre o caso e murmurou consigo:

         – Antes penar que morrer…

                                                           *****

            – Será verdade isso, vovó? Será certo esse “antes penar que morrer”?

            – Depende da ideia que a gente faz da morte, minha filha. Quem a considera um Mister Ceifas, ah, esse prefere a amável visita de Mister Ceifas ao tal penar.

            – E que é penar?

            – É sofrer dor prolongada, é sofrer um castigo, uma pena.

   – Mas como é que pena é ao mesmo tempo dor e aquilo das aves? Isso atrapalha a gente. Emília, quando ainda era uma coitadinha que estava decorando as palavras, uma vez confundiu as duas penas – a pena dor e a pena pena, e veio da cozinha dizendo: “Tia Nastácia está contando para o Visconde que para pena de costas o melhor remédio é passar iodo com uma dor de galinha”. Ela havia trocado as bolas…

            – São coisas do latim, minha filha. Nessa língua havia duas palavras parecidas: poena e penna. A primeira virou em nossa língua “pena” – pena-dor; e a segunda ficou penna mesmo – a tal das aves.

            – E depois a penna das aves perdeu uma peninha e virou pena com um n só, igual à pena-dor – concluiu Emília –, e agora está aí, está aí, está aí…

            – Está aí o quê, Emília?

            – Está aí um grande embrulho…

 

30 – Qualidade e quantidade

         Meteu-se um mono a falar numa roda de sábios e tais asneiras disse que foi corrido a pontapés.

         – Quê? – exclamou ele. – Enxotam-me daqui? Negam-me talento? Pois hei de provar que sou um grande figurão e vocês não passam de uns idiotas.

         Enterrou o chapéu na cabeça e dirigiu-se à praça pública, onde se apinhava copiosa multidão de beócios. Lá trepou em cima de uma pipa e pôs-se a declamar. Disse asneiras como nunca, tolices de duas arrobas, besteiras de dar com um pau. Mas como gesticulava e berrava furiosamente, o povo em delírio o aplaudiu com palmas e vivas – e acabou carregando-o em triunfo.

         – Viram? – resmungou ele ao passar ao pé dos sábios. – Reconheceram a minha força? Respondam-me agora: que vale a opinião de vocês diante desta vitória popular?

         Um dos sábios retrucou serenamente:

           – A opinião da qualidade despreza a opinião da quantidade.

                                                           *****

            – Nada mais certo, meus filhos – disse Dona Benta. – Logo que os homens se reúnem em multidão, o nível mental baixa muito. Quanto maior a multidão, mais baixo o nível mental. Por isso é que os sábios têm tanto medo às multidões.

            – A senhora já nos contou aquele caso lá da Grécia – lembra-se?

            – Sim, o caso do orador que estava fazendo um discurso para o povo. De repente rebentaram tremendos aplausos. O orador voltou-se para um amigo ao lado: “Será que eu disse alguma asneira?”.

 

31 – O cão e o lobo

         Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão – mas um cão e tanto, gordo, forte, de pelo fino e lustroso.

         Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: “Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo”.

         O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse:

         – Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pelo macio! Vê-se que o amigo se trata…

         – É verdade! – respondeu o cão. – Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo…

         – Como?

         – Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu.

         – Explique-me lá isso por miúdo – pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.

         – É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, restos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome.

          – Aceito! – respondeu o lobo. – Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim?

         – Em troca disso – continuou o cão – você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.

         – Fechado! – resolveu o lobo e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.

         – Que diabo é isso que você tem no pescoço? – É a coleira.

         – E para que serve?

         – Para me prenderem à corrente.

         – Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?

         – Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa?

         O lobo entreparou, refletiu e disse:

         – Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço. Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.

         E afundou no mato.

                                                           *****

            – Fez muito bem! – berrou Emília. – Isso de coleira, o diabo queira…

            Narizinho bateu palmas.

            – E não é que ela fez um versinho, vovó? “Isso de coleira, o diabo queira…” Bonito, hein?…           

            – Bonito e certo – continuou Emília. – Eu sou como esse lobo. Ninguém me segura. Ninguém me bota coleira. Ninguém me governa. Ninguém me…

            – Chega de “mes”, Emília. Vovó está com cara de querer falar sobre a liberdade.

            – Talvez não seja preciso, minha filha. Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso.

            – Nada mais certo, vovó! – gritou Pedrinho. – Este seu sítio é o suco da liberdade; e se eu fosse refazer a natureza, igualava o mundo a isto aqui. Vida boa, vida certa, só no Picapau Amarelo.

            – Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo!

 

32 – O corvo e o pavão

         O pavão, de roda aberta em forma de leque, dizia com desprezo ao corvo:

         – Repare como sou belo! Que cauda, hein? Que cores, que maravilhosa plumagem! Sou das aves a mais formosa, a mais perfeita, não?

         – Não há dúvida de que você é um belo bicho – disse o corvo. – Mas, perfeito? Alto lá!

         – Quem quer criticar-me! Um bicho preto, capenga, desengraçado e, além disso, ave de mau agouro… Que falha você vê em mim, ó tição de penas?

         O corvo respondeu:

         – Noto que para abater o orgulho dos pavões a natureza lhes deu um par de patas que, faça-me o favor, envergonharia até a um pobre-diabo como eu…

         O pavão, que nunca tinha reparado nos próprios pés, abaixou-se e contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu caminho sem replicar coisa nenhuma.

         Tinha razão o corvo: não há beleza sem senão.

                                                           *****

            – Que quer dizer “senão”, vovó?

            – Aqui nesta frase quer dizer “defeito”.

            – E por que “senão” é defeito?

            – Porque o modo de botar um defeito em alguém ou alguma coisa era sempre por meio do “senão” – e por fim essa palavra ficou sinônima de defeito. “Fulana seria muito bonitinha, senão fosse aquele nariz de coruja.” “Esse doce estaria ótimo, senão fosse estar doce demais” – e assim por diante.

            – Mas é verdade, vovó, que não há mesmo beleza sem senão?

            – A fábula diz que não há e as fábulas sabem…

            – São sabidíssimas, sim! – continuou Emília. – E a dos filhos da coruja é a mais sabida de todas. Quem é que andou inventando as fábulas, Dona Benta? Foram os animais mesmo?

            Dona Benta riu-se.

            – Não, Emília. Quem inventou a fábula foi o povo e os escritores as foram aperfeiçoando. A sabedoria que há nas fábulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida à força de experiências.

            – Mas não haverá mesmo beleza sem senão, vovó? – insistiu a menina.

            – Há, sim, minha filha. Para mim, por exemplo, você é uma belezinha sem senão.

            Emília torceu o nariz. Depois prometeu escrever uma fábula com o título: “Os netos da coruja”.

 

33 – Os animais e a peste

         Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um mono de barbas brancas.

         – Esta peste é um castigo do céu – respondeu o mono –, e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.

         – Qual? – perguntou o leão.

         – O mais carregado de crimes.

         O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois de uma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:

         – Amigos! É fora de dúvida que quem deve se sacrificar sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o sacrifício necessário ao bem comum.

         A raposa adiantou-se e disse:

         – Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. Matar veados – desprezíveis criaturas; devorar ovelhas – mesquinhos bichos de nenhuma importância; trucidar pastores – raça vil, merecedora de extermínio! Nada disso é crime. São coisas até que muito honram o nosso virtuosíssimo rei leão.

         Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora – e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.

         Apresenta-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se ele de mil crimes, mas a raposa prova que também o tigre era um anjo de inocência.

         E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.

         Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

         – A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve na horta do senhor vigário.

         Os animais entreolhavam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra.

         – Eis, amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra, porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.

         Toda a bicharia concordou e o triste burro foi unanimemente eleito para o sacrifício.

         Aos poderosos tudo se desculpa; aos miseráveis nada se perdoa.

                                                                       *****

            – Viva! Viva!… Esta é a fábula do Burro Falante. – e Pedrinho recordou todos os incidentes daquele dia lá no País das Fábulas. – Esta história estava se desenvolvendo, e no instante em que as feras iam matar o pobre burro, o Peninha derrubou do alto do morro uma enorme pedra sobre as fuças do leão. (*)

            – Salvamos o Conselheiro – disse Emília –, mas o fabulista pegou um segundo burro para poder completar a fábula. Pobre segundo burro!… – e Emília suspirou.

            – Esta fábula me parece muito boa, vovó – opinou Narizinho.

            – E é, minha filha. Retrata as injustiças da justiça humana. A tal justiça humana é implacável contra os fracos e pequeninos – mas não é capaz de pôr as mãos num grande, num poderoso.

            – Falta um Peninha que dê com pedras do tamanho do Corcovado no focinho do Leão da injustiça…

(*) Do  livro Reinações de Narizinho.

 

34 – O carreiro e o papagaio

         Vinha um carreiro à frente dos bois, cantarolando pela estrada sem fim. Estrada de lama.

         Em certo ponto o carro atolou.

         O pobre homem aguilhoa os bois, dá pancadas, grita; nada consegue e põe-se a lamentar a sorte.

         – Desgraçado que sou! Que fazer agora, sozinho neste deserto? Se ao menos São Benedito tivesse dó de mim e me ajudasse…

         Um papagaio escondido entre as folhas condoeu-se dele e, imitando a voz de santo, começou a falar:

         – Os céus te ouviram, amigo, e Benedito em pessoa aqui está para o ajutório que pedes.

         O carreiro, num assombro, exclama:

         – Obrigado, meu santo! Mas onde estás que não te vejo?

         – Ao teu lado. Não me vês porque sou invisível. Mas, vamos, faze o que mando. Toma da enxada e cava aqui. Isso. Agora a mesma coisa do outro lado. Isso. Agora vais cortar uns ramos e estivar o sulco aberto. Isso. Agora vais aguilhoar os bois.

         O carreiro fez tudo como o papagaio mandou e com grande alegria viu desatolar-se o carro.

         – Obrigado, meu santo! – exclamou ele de mãos postas. – Nunca me hei de esquecer do grande socorro prestado, pois que sem ele eu ficaria aqui toda a vida.

         O papagaio achou muita graça na ingenuidade do homem e papagueou, como despedida, um velho rifão popular:

         – Ajuda-te, que o céu te ajudará.

                                                           *****

            – Como são sabidinhos esses bichos das fábulas! Esse papagaio, então, está um suco!

            – Suco de quê, minha filha? – perguntou Dona Benta.

            – De sabedoria, vovó! O meio de a gente se sair de uma dificuldade é sempre esse – lutar, lutar…

            – Eu sei de outro muito melhor – disse Emília. – Dez vezes melhor…

            A menina admirou-se.

            – Qual é, Emília?

            – É quando todos estão desesperados e tontos, sem saber o que fazer, voltarem-se para mim e: “Emília, acuda!”, e eu vou e aplico o faz-de-conta e resolvo o problema. Aqui nesta casa ninguém luta para resolver as dificuldades; todos apelam para mim…

            – E você manda o Visconde. Sem o faz-de-conta e o Visconde ela não se arranja.

            – Mas o caso é que os problemas se resolvem. É ou não?

            Narizinho teve de concordar com ela.

 

35 – O macaco e o gato

            Simão, o macaco, e Bichano, o gato, moram juntos na mesma casa. E pintam o sete. Um furta coisas, remexe gavetas, esconde tesourinhas, atormenta o papagaio; outro arranha os tapetes, esfiapa as almofadas e bebe o leite das crianças.

         Mas, apesar de amigos e sócios, o macaco sabe agir com tal maromba que é quem sai ganhando sempre.

         Foi assim no caso das castanhas.

         A cozinheira pusera a assar nas brasas umas castanhas e fora à horta colher temperos. Vendo a cozinha vazia, os dois malandros se aproximaram. Disse o macaco:

         – Amigo Bichano, você, que tem uma pata jeitosa, tire as castanhas do fogo. O gato não se fez insistir e com muita arte começou a tirar as castanhas.

         – Pronto, uma…

         – Agora aquela de lá… Isso. Agora aquela gorducha… Isso. E mais a da esquerda, que estalou…

         O gato as tirava, mas quem as comia, gulosamente, piscando o olho, era o macaco…

         De repente, eis que surge a cozinheira, furiosa, de vara na mão.

         – Espere aí, diabada!… Os dois gatunos sumiram-se aos pinotes.

         – Boa peça, hein? – disse o macaco lá longe.

          O gato suspirou:

         – Para você, que comeu as castanhas. Para mim foi péssima, pois arrisquei o pelo e fiquei em jejum, sem saber que gosto tem uma castanha assada…                                                   

         O bom-bocado não é para quem o faz, é para quem o come.

                                                           *****

            – Quem é bobo, peça a Deus que o mate e ao diabo que o carregue – comentou Emília. O Visconde vinha entrando. Ouviu a discussão e disse:

            – Aqui está um que nunca jamais teve o gosto de comer o bom-bocado. Quando chega a vez dele, aparece sempre alguém que o logra.

            Todos compreenderam a indireta…

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