Alma desdobrada, cap. 108, 109, 110, 111 e 112.

Alma desdobrada, capítulos 108, 109, 110, 111 e 112.

 

108.

          devo ir a petrópolis, receber uma duplicata para a madeirit. levo o primeiro volume de crime e castigo. comprei-o, porque lera recordações da casa dos mortos, um livro que achara estranhamente belo. eu tinha comprado as recordações por acaso, numa liquidação de livros; havia um nero, de alexandre dumas, e as recordações. nada sabia a respeito do autor. ninguém jamais falara a mim sobre ele. deu-se, pois, que li as recordações e comprei o crime e castigo.

          naquela época eu não sabia o que me atraía em dostoievski. eu o amei loucamente desde o princípio. nenhum homem, nenhuma criatura, me falou tanto ou tão fundo do que penso ser meu: meu coração, meu destino, minha vida, minha história, meu universo.

 

109.

          Z…, Z…, que coisas adormecem no teu coração?

          Z…, Z…, que coisas já se despertaram em você?

          Z…, Z…, me fale de mim, jorge! quero saber mais de você.

 

 110.

          fiquei dias e dias sem escrever. assim resolvi, porque sentia que não estava tendo tempo para me dedicar a este livro como eu acho que é preciso. escrever reflexões sobre toda uma existência, assim dessa maneira tão fragmentada, vai requerer uma dedicação exclusiva. eu estava me perdendo no meio de certos pedaços. parei e voltarei depois, com um propósito absoluto: quero ir até o limite de todas as coisas.

          se peguei o texto agora, foi apenas para dizer de mim, hoje.

          estou triste, como estou triste!

          estou triste, porque me percebo não amando Z….

          não sei se essa fênix renascerá depois, de suas próprias cinzas, como já aconteceu outras vezes. estou vazio, como que meio morto.

          apatetado, de pé, escultura a mostrar um grande oco por dentro da alma. sinto como se tivessem tirando as rolhas que tampassem os meus dedos dos pés e, lentamente, sem nenhum alarde, a vida se me foi escapando. senti que algo descia e se perdia no mundo, escorregava pra fora, me deixando oco de tudo.

          estive uns dias incapaz de sofrer.

          não quero me alongar.

          sofro porque não amo Z….

          não te amo, Z….

          meu amigo.

          quero chorar.

 

111.

          quanto tempo estive longe desse livro! dá pra dizer, então, que longo foi o tempo em que estive longe de mim mesmo, daquilo que, de tão profundamente meu, não venha mais a me pertencer, mas vague num fundo, solto num mar sem dono nem direção.

 

112.

          por força de minha terapia, resolvo num qualquer momento, escrever sobre tudo aquilo cuja lembrança me incomoda. chamaria a isto de diário sórdido. estou lanchando com Z… e lhe falo de minha ideia. porque escrever apenas das coisas desagradáveis?, ele pergunta. não sei. acho que quero me livrar delas. jorge, ele discute, tudo tem o mesmo significado, o sórdido e o sublime. eu não me convenço de momento. quando iniciei estas anotações, todavia, meu corpo e minha alma pediram luzes e alegrias, a contracenar com as tão desagradáveis coisas que eu pretendia escrever. também me pareceu que a palavra correta não seria sórdido mas triste. prefiro como está sendo. não é um diário sórdido. não há, não existe em minha vida o que seja sórdido. há coisas aceitas e coisas condenadas. o comum dos mortais tem medo de algumas liberdades. não quero discutir isto agora. quero apenas dizer como é profundo, isto da gente ser inteiramente livre para qualquer forma de vida.

          Z…, admiro tua maturidade. sempre admirei. te amo tanto, também, sabia? sabia.

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