alma desdobrada, cap. 15,16,17,18, 19, 20, 21 e 22

Alma desdobrada, capítulos 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22.

 

 015.

          estou tenso porque chegou o momento de nascer meu filho. me lembro do momento em que ele foi feito e começo a divagar:

         eu e A… deitados, cama limpa, corpos com cheiro de sabonete, intenções puras, nenhuma tensão. o casal correto, não estou querendo ser irônico. ela parou, há dias, de tomar pílula, ludibriamos com orgasmos sem penetração, para dar um tempo ao organismo dela para descansar da influência dos hormônios artificiais. e então chega um dia em que, de acordo com resoluções de comuníssimo acordo, tudo está liberado. carinhos crescem, os corpos sabem bem o que fazer, os corpos decidem por si porque os corpos não têm amarras nem âncoras e, se é que existe alma, os corpos são a concretização do que há de mais profundamente humano na alma.

 

016.

          fosse eu inventar uma religião, para que ela fosse a mais violentamente divina, traçaria dela um projeto em que os corpos fossem imortais. meu corpo é mais eu.

  

017.

          meu corpo é mais eu.

  

018.

          descobri os nomes dos três trágicos gregos numa pequenina enciclopédia, no verbete sobre grécia antiga. eles é que diziam de suas peças, maravilhosas; eu nada sabia. comprei um eurípides: as troianas, ifigênia em táuride e electra. eu tinha dezenove anos.

         quantas vezes li em voz alta os diálogos entre hécuba e aqueles que traziam a ela a sua dor e sua consolação e sua insolência! aquilo me soava como uma linguagem além do humano, ainda mais que era em francês. as frases me afligiam como se fossem sagradas badaladas de um sino pagão, a ecoar desde as origens de todos os tempos.

  

019.

          é quase uma hora da tarde. hoje é dia de jogo do brasil, o expediente se encerra mais cedo. então não receberei o telefonema de meu amado amigo. devo chamá-lo amanhã e essa espera se faz angustiante. olho em seguida o relógio e penso que talvez eu pudesse chamá-lo rapidinho. eu seguro, porém, o meu desejo. vou guardar estas chamadas fora de hora para quando estiver louco de todo por você.

         por enquanto, só estou louco de quase todo.

  

020.

          estou louco de quase todo por você.

  

021.

          ele está sozinho na chácara. visitas não vieram. o dia declina, a escuridão principia o seu anúncio discreto. não dá para dizer, não daria nunca para dizer, que esta é uma vida entediada. ele ouviu música, não leu, ele tem lido pouco, escreveu algumas coisas sobre as emoções últimas. limpou a casa, perambulou por aqui e por ali. olha a janela da frente, esperando que alguém passe pela estradinha. há muitos tipos de alguém, os velhinhos que sobem lentos, os pequeninos que vêm aos pulos e excitam os cachorros com suas pedradas sem mira, as senhoras vagarosas com suas sacolas, os homens apressados que olham a casa uma só vez e passam rapidamente, os adolescentes com seus olhares clandestinos, que escondem mil e uma aventuras não engatilhadas. ele olha a cascata lá embaixo, a água desce eternamente, agora é verdade que ele já se acostumou com o infinito movimento dessa água que nunca acaba.

os cavalos pastam pesados, as galinhas já se empoleiraram, as cabras farejam o ar. está na hora de alimentar os animais.

        algumas tarefas trazem o homem do céu da dor para o chão.

 

 022.

          quantas coisas já se falou de hamlet?

         eu o sinto como o mais preciso ponto de desequilíbrio que alguém pode ocupar durante um certo tempo: razão e loucura, medo e coragem, amor e ódio, vida e morte, fantasia e real.

         tudo é sempre entre aqui e ali.

         o presente eterno e terrível, carregado de um passado que se precipita para o depois. 

 

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