apolo e jacinto, 22.
teófilo entrou no cômodo de hans. ele estava na janela. sobre a mesa, o punhal. ouvindo-o, hans voltou-se. sentou-se grave na cadeira.
ninguém falava. teófilo pegou o punhal, esteve a olhá-lo, o coração queria explodir. quis mencionar algo, perdeu-se, as palavras que seu pensamento formulava voltavam para trás e atrapalhavam a ordem das que deveriam vir a seguir, provocando dentro dele confusão e pasmo. suas palavras eram um bando de bois que se recusavam a sair para o sacrifício.
na próxima semana, voltarei para a alemanha.
vai ficar muito tempo?
até morrer!
hans!
era demais! privar-se a um só tempo de luis e de seu fiel e antigo conselheiro!
hans!, o que está acontecendo?
é difícil de explicar! eu me vi, de repente, no meio de um deserto. meus caminhos se misturaram, não sei explicar. a quem eu vou transmitir meu cetro?
mas você não tem feito outra coisa, se não transmitir cetros! é preciso que seja seu filho ou seu neto? pensa na quantidade de criados, a quem já ensinou a ler.
O criado!
O criado!
eu não sei de onde veio minha decisão. não tenho nada a reclamar daqui. acho que foi a imagem que criei. eu me via num caminho; onde eu parasse, ali eu ficaria e meu filho continuaria a seguir e, onde ele ficasse, dali seguiria o seu filho e o filho de seu filho. aquela caçada me fez alterar os planos. meu filho não voltou vivo. tentei correr pra alcançar meu neto, queria ensinar a ele o que a vida tinha me ensinado… pra que ele levasse hans vivo, até os confins de minha descendência… e agora? e agora?
isto foi terrível! o que aconteceu aqui, foi terrível!…
o caminho se estende, vazio. eu não vou resistir. me sinto perdido, nu e com frio. só me falta uma muleta, e eu a estendê-la pra tatear os buracos e as serpentes… não. não. não vou me arrastar nas tuas terras! não vou ficar cego debaixo deste céu!
hans, isto é absurdo. você, aqui, é como um pai! um senhor absoluto!
cansei de ser pai! vou voltar pelo mesmo caminho. é na minha origem que se esconde o objetivo de minha vida!
hans, a vida é irreversível! o que espera encontrar na sua aldeia?
túmulos e túmulos! é entre eles que quero o meu!
que diferença vai fazer ser enterrado lá ou aqui?
nenhuma para um morto! mas eu ainda estou vivo! e o que tenho em volta de mim? em quem corre o sangue de minha veia?
e quem você espera encontrar lá?
já disse que meus mortos.
teus dois mortos mais preciosos, estão aqui, hans. é horrível isto!
quem sabe eu esteja querendo fugir exatamente deles? eu não aguentarei…
não te entendo, hans. mas não posso fazer nada. prepararei tua viagem, você partirá com todo o conforto. e vai deixar um vazio muito grande.
os dois silenciaram um tempo.
você sempre foi ponderado, cauteloso, prudente. tudo isto está me parecendo uma escapada um tanto mística! voltar às origens!…
não é misticismo, teófilo. me deu saudade da neve, me deu saudade do rio milenar, me deu saudade da minha língua, que nem sei se sei ainda… penso que isto se perdoa num velho.
novo silêncio demorado.
hans, não quero te atrapalhar. não sei se você espera de mim algum silêncio ou alguma palavra a mais. atenção ao que digo: embora você volte pela mesma estrada, o caminho não é o mesmo que te trouxe aqui. um trecho, uma vez percorrido, é destruído. não podemos voltar atrás! atrás se estende um buraco imenso, ventos gelados, o tempo destrói o que existiu antes!
hans sorriu. Alguma ironia escondida?
acho que minha imagem te impressionou muito. digamos, então, que não é por querer voltar às minhas origens. está certo, meu caminho não existe mais. lá, só encontrarei mortos, que diferença faz os mortos de lá ou os de cá? que diferença faz se semeio luz em corpos onde não corre meu sangue? meu pobre sangue, que se apagará da face da terra, agora que morrerei sem descendência. está bem!, está bem! não falarei de caminhos nem de cetros… mas me deu saudade… não é saudade! é uma espécie de chamado. sou como um velho animal, que ouve a voz de desmanchados ossos. são eles que me chamam… é a ossada em poeira da minha aldeia…
silenciou. acho que tenho lido muita poesia. e agora você vai criticar minha nova imagem.
vou lamentar sua partida. farei com que ela seja digna de teus serviços.
não quero escolta.
não permitirei que viaje sozinho.
quero dois ou três criados.
a viagem é longa, hans.
sei disso! mais longa do que você pensa. e eu pretendo chegar vivo. não quero me acabar entre um ideal e outro. não serei pasto de urubus estrangeiros. isto se perdoa a um velho?
a você eu perdoaria tudo, hans, contanto que desistisse!
Eu não te perdoarei nunca! não depende de mim, desistir. é o curso do meu rio que faz uma grande e inesperada curva! gostaria de te pedir um favor. você me cederia o teu criado de quarto?
alio?
sim. gostaria que ele fosse comigo.
pra sempre?
e por que não? te interessa, por algum motivo?
teófilo pegou o punhal. levantou-se, foi até a janela. as ondas lá longe lambiam a areia. as ondas lá longe lambiam a areia. as ondas lá longe não se cansavam de lamber a areia. um calor inesperado começou a consumir seu coração. tinha que enfrentar hans, novamente.
por que especialmente alio?
se me for concedido o pedido, partirei em silêncio.
um ardor perturbou teófilo.
não te entendo, hans. sempre fomos sinceros e falamos a verdade um ao outro.
até bem pouco tempo foi assim. hans começou a tremer. você não tem o direito de me exigir a verdade.
faltei porventura em algo que se relacione com o domínio do castelo e da nossa região?
hans perdeu o controle.
não é fato que interesse a castelos e senhores! é problema meu! hans quase chorava. é a amizade, a confiança, não entre o senhor e o conselheiro, mas entre teófilo e o avô de luis.
teófilo estremeceu por inteiro. hans continuou, implacável, como quem lê uma condenação:
você perdeu a batalha, meu amigo. luis delirou toda a noite. não quero te julgar. não me interessa te julgar. me pergunto se não foi melhor que ele tenha morrido.
os olhos de hans brilharam num relance, já se apagaram. os olhos de teófilo ardiam mas ele quis resistir.
hans, não sei do que está falando… não sei o que ele delirou… não aconteceu… nada… nada… entre nós… que me comprometesse! não sei do que você fala.
não quero falar disso! me desagrada falar disso! e se, de fato, nada aconteceu, tanto melhor que tenha morrido!
hans!
vou enterrar estas palavras como fiz com meu netinho. não se repetirá, jamais, nada a respeito do acontecido. e o pior, o pior, é que não sei de que era feita a felicidade dele! se ele precisava de você, pra ser feliz.
hans, eu preciso me explicar!
não quero falar disto! não sou mais seu conselheiro! serei hóspede por uma semana, mais ou menos, se você assim o permitir.
você não é hóspede aqui! sempre foi como o dono de tudo! mas isto não vem ao caso! eu preciso me explicar! e você precisa entender! na idade dele é comum um relacionamento com homens mais velhos. não se esqueça de que luis não teve pai.
por favor, não me atormente com isto. quero partir sem odiá-lo. estou tentando não ficar com raiva de você…
teófilo se calou. Qualquer coisa que eu fale a meu favor, será mentira.
hans! Preciso desta mentira! hans!, o que foi que ele disse?
não se fala mais nisso! se não sair daqui, eu saio!
você não saberá jamais do tamanho da sua injustiça!
a palavra injustiça chicoteou o velho. você!, a falar de injustiça!
pois eu vou falar, quer você queira, quer não! no princípio, eu não entendia o que se passava. ele me rodeava, me vigiava. foi depois da minha doença. eu me interessei profundamente por ele. parecia que via nele o filho que nunca veio. não sei se dá pra falar em caminhos e cetros. não quero me desviar. ele me preocupava com o exagero das atenções. quando se preparou a viagem, quis ir comigo e você permitiu. achei que era melhor deixá-lo agir como quisesse, até que se esgotasse o seu interesse. depois, veio a doença e a morte. você está exagerando, hans. todos, nesta idade, tentam alguma aproximação com algum homem mais velho. lembra-se de como eu te admirava quando você aqui chegou? luis nunca teve pai!
hans baixara a cabeça, escondendo-a entre as mãos. ele me falou horrores naquela noite. que o amava. eu não entendia nada! repetia seu nome sem parar. teófilo, me leva pra biblioteca. não quero ficar aqui com eles. vamos, pra cama onde…
hans quase soluçava. tremia inteirinho.
hans!… mas preferiu silenciar. asas negras levantavam o peso que oprimia seu coração. sentiu, depois, que o coração voara junto.
o velho pegou o punhal, cravou-o na mesa, baixou a cabeça, desesperado.
não entendo nada!, não entendo!, não entendo! e silenciou longo tempo.
Depois dessa mentira, outras virão. Ele não poderá saber de alio, por exemplo. teófilo se acalmava lento. hans parou de ofegar, mas ainda tinha o rosto escondido.
hans, não entendo como você chegou tão longe! não entendo como raciocinou pra me responsabilizar pelo delírio de um menino. eu gostava muito dele, você sabia disso.
hans gemeu, cabisbaixo ainda, não falou nada.
eu gostava dele, porque pensava que meu filho poderia ser ele, o filho que não tive. ele queria aprender cítara, queria copiar meus dialetos e eu pensei que não fazia mal em ficarmos juntos. como poderia imaginar… o que se passava na cabeça dele? e depois… quando se é novo… não sei… estes sintomas desaparecem logo… penso que foi a coincidência de ter morrido no momento em que queria viajar comigo… não sei, não entendo…
hans levantou a cabeça muito sério. fitava o vazio. mas seu olhar fora conquistado.
pretendia ensinar a ele as coisas que não aprendi direito, pretendia que ele me suplantasse, pra que eu pudesse me orgulhar dele. isto que aconteceu… foi horrível!… não sei se me entende, hans.
uma dor verdadeira vencia hans em sua tentativa de ser racional. quase chorava.
eu confundi as coisas, talvez. você se açoitou, depois ele morre falando aquelas coisas todas…
mas o açoite foi uma estupidez que até hoje não entendo! não tinha nada a ver com luis! tive pesadelos, por um momento as coisas da infância me dominaram e eu me vi indefeso e desesperado… bem, era um problema meu! não acredito nisto, mortificação, essa porrada de merda inútil. você mesmo sempre me ensinou sobre os horrores dessa nossa igreja!
hans quase sorriu.
sinto muito. eu fiquei desnorteado. acreditei que tudo que ele falara já tivesse acontecido. a morte dele me fez desmoronar por inteiro. e depois, surge você com alio, todo vestido com roupas caras!
que absurdo!, hans. sua túnica se rasgou num espinheiro. tivemos que arrumar outra.
eu confundi tudo! secando o rosto. desculpe.
hans, não se torture.
está escurecendo. vou sair um pouco. levantou-se grave. foi até a janela.
pensei em levar alio, pra facilitar o seu caminho!
as ondas eternamente lamberiam a areia com línguas de espuma.
ainda assim, partirei na próxima semana.
Visitas: 268