O Sítio… Quinta Parte

Reinações de Narizinho

 Quinta Parte: Aventuras Do Príncipe

 1 – O gato Félix

            Num dia de sol muito quente Lúcia e Emília sentaram-se à sombra da jabuticabeira, à espera de Pedrinho que fora ao mato cortar varas para uma arapuca.

            Longo tempo estiveram as duas recordando as festas do casamento, terminadas dum modo tão estranho em virtude da eterna gulodice de Rabicó. De repente, um miado de gato.

            Narizinho admirou-se, porque não havia gatos no sítio.

            — Emília — disse ela de ouvido à escuta — este miado está me parecendo miado do gato Félix…

            Era a primeira vez que a boneca ouvia falar em semelhante personagem.

            — Quem é esse cidadão? — indagou.

            — Oh, é um gato que você nem imagina que gato é, de tão inteligente e reinador! Mete-se nas maiores aventuras, aparece nas fitas de cinema, pinta o sete.

            Ninguém pode com a vida dele. O gato Félix sai vencendo sempre.

            — Nem Tom Mix?

            — Tom Mix vê o gato Félix e bota-se!…

            Emília deu um suspiro.

            — Ai, ai! Era com uma pessoa assim que eu desejava ser casada…

            Nisto uma cara de gato apareceu numa moitinha próxima, a olhar para as duas com muita curiosidade.

            — É ele mesmo! — exclamou a menina. — Juro que é o Félix!… e fez pshuit, pshuit…

            O gato saiu da moita, vindo com toda a sem-cerimônia sentar-se no colo dela.

            Narizinho alisou-lhe o pêlo e indagou:

            — Como é que anda por aqui, Félix? Pensei que morasse nos Estados Unidos.— Ando viajando — respondeu ele. — Estou correndo mundo para fazer um estudo sobre ratos. Quero saber qual o país de ratos mais gostosos. Até no fundo do mar já estive, onde me empreguei numa corte muito bonita de um tal príncipe Escamado.

            — Que bom! — exclamou a menina batendo palmas. — Não sabe que me casei com esse príncipe?

            — Sei, sim. Ele mesmo me contou. Por sinal que anda morto de saudades da menina.

            — E não me mandou nenhum recado?

            — Mandou, sim. Mandou dizer que hoje, sem falta, vem ao sítio de dona  Benta fazer uma visita à sua querida esposa. Quer matar as saudades e também conhecer sua vovó.

            — Sua de quem? Minha ou dele?

            — Sua e dele. O príncipe chama dona Benta de vovó.

            Narizinho enterneceu-se.

            — Vê, Emília? Vovó virou avó dele também… Que amor!

            E voltando-se para o gato:

            — Mas vem hoje mesmo ou é um modo de dizer?

            — Vem, sim. Quando saí de lá, o príncipe estava aprontando a malinha de viagem, com o coche de gala já à espera na porta.

            — Como é a malinha dele? — perguntou a boneca.

            — Não meta o bedelho, Emília — advertiu Narizinho. — Antes vá avisar vovó e tia Nastácia da visita do príncipe. Mexa-se…

            A boneca amarrou o burrinho, pois estava curiosa de ouvir a conversa do gato, e foi andando de corpo mole em direção à casa, sem a menor pressa de chegar.

            Enquanto isso a menina dizia ao gato:

            — Continue, senhor Félix!

            — Não me lembro onde estava…

            — No coche…

            — É verdade. O coche já está à espera dele. Vem o príncipe, vem o doutor Caramujo, vem o Bernardo Eremita, vêm todos.

            Narizinho bateu palmas, e de tão contente chegou a dar um beijo no focinho do gato Félix.

            — Vai ser uma lindeza! A boba da vovó e tia Nastácia vivem duvidando do que eu conto. Quero só ver a cara delas agora…

            Depois chamou a boneca, que já ia meio longe:

            — Emília!…

            — Que é, Narizinho?

            — Para onde vai indo com “tanta pressa”?

            — Dar o recado que você mandou.

            — Volte, boba! Não viu que falei de mentira? Emília voltou, no seu passinho duro de boneca.— Escute — disse-lhe a menina. — Vamos hoje pregar uma grande surpresa em vovó e preciso combinar tudo com Pedrinho. Vá chamar Pedrinho. Diga-lhe que venha correndo.

            — Chamar de mentira?

            — Não! Desta vez é de verdade. E depressa! Vá num pé e volte noutro.

            Pedrinho veio e os quatro levaram uma porção de tempo combinando a surpresa que iam pregar na pobre vovó. O gato Félix foi mandado ao encontro do príncipe para avisá-lo da hora justa em que devia chegar. Em seguida Narizinho fez recomendações à boneca.

            — A surpresa vai ser no finzinho do almoço. Mas você não pegue a fazer cara de muito sabida, que vovó desconfia.

            Chegada a hora do almoço, todos foram para a mesa. Nada se passou de extraordinário até o momento do café. Aí dona Benta fixou os olhos na cara da Emília e disse:

            — Estou desconfiada de que vocês estão me armando alguma peça. Esse ar de sonsa da Emília não me engana.

            Emília nunca soube fingir. Quando ia fingir, fingia demais e estragava o fingimento. Mas Narizinho sossegou a boa velha.

            — Não é nada, vovó. Emília é uma bobinha.

            Nisto ouviu-se rumor lá fora, seguido de batida na porta — uma batidinha muito delicada, tic, tic, tic…

             Quem será? — exclamou dona Benta, estranhando aquele modo de bater,       gritou para a cozinha: “Nastácia, venha ver quem bate.”

            A negra apareceu, de colher de pau na mão. Foi abrir, mas de acordo com o seu costume, espiou primeiro pelo buraco da fechadura.

            Espiou e ficou assombrada.

             Que é, filha de Deus? — perguntou dona Benta inquieta.

             Credo! — exclamou a preta. — O mundo está perdido, sinhá!…

             Mas que é, rapariga ? Desembuche…

             É uma bicharia, que não acaba mais, sinhá! O terreiro está “assim” de peixe, de concha, de caranguejo, de quanto bichinho esquisito há lá no mar. Até nem ei se estou acordada ou dormindo… — e beliscou-se para ver.

             Eu bem estava adivinhando que ia haver coisa hoje! – disse dona Benta erguendo-se da mesa para espiar também. Arrumou os óculos e, afastando tia Nastácia, olhou pelo buraco da fechadura. E ficou ainda mais assombrada do que a preta ao ver toda a população miúda do mar rodeando a casa.

            — Que significa isto? — perguntou voltando-se para Narizinho.

            — Não é nada, vovó. É o príncipe Escamado com sua corte que vem nos visitar. Ele quer muito conhecer a senhora.

            Dona Benta olhou para tia Nastácia, de boca aberta, sem saber o que dizer.

            — Eles são todos muito boa gente — continuou a menina. – Vão passar aqui a tarde e garanto que não desarrumam coisa nenhuma. Vovó pode ficar descansada.

            — Mas que idéia, Narizinho, de virar esta casa em jardim zoológico! Onde iremos parar com tais brincadeiras?

            — Não deixe, sinhá! — interveio a preta. — Não abra a porta. É tanto bicho esquisito que até estou tremendo de medo.

            Narizinho deu uma risada.

            — Eles não mordem, boba! São criaturinhas civilizadas e de muito boa educação.

            A preta não se convenceu.

            — Eu sei! — disse ela. — Certa ocasião um caranguejo me ferrou neste dedo que até marca deixou. Não consinta, sinhá! Não deixe entrar em sua casa essa bicharia sem jeito.

            E foi tratando de botar a tranca na porta. Vendo que a tranca na porta iria estragar todo o seu plano, Pedrinho saiu pelos fundos para entender-se com o príncipe, ao qual disse:

            — Vovó e tia Nastácia estão tremendo de medo, sem coragem de abrir a porta. Umas bobas. Pensam que vocês são desses bichos malvados que mordem.

            O príncipe, que esperava uma calorosa recepção por parte de dona Benta, ficou muito ressentido.

            — Nesse caso prefiro voltar — disse com dignidade. — Não me julgo com direito de perturbar o sossego duma tão respeitável senhora.

            — Isso é que não !— retorquiu Pedrinho. — Já que vieram, têm que entrar, quer as velhas queiram, quer não queiram. Se não puderem entrar pela porta, entrarão pela janela. Esperem aí…

            E foi correndo buscar uma escada.

 

2 – Entram todos

            Enquanto tia Nastácia, depois de colocar a tranca na porta, procurava arrastar a mesa para formar uma barricada, o príncipe e sua comitiva iam subindo pela escadinha que o menino trouxera.

            Subiram e pularam para dentro da sala. Quem primeiro pulou foi o doutor Caramujo. Tia Nastácia, ainda às voltas com a mesa, ouviu o barulhinho e voltou-se.

            Deu um berro.

            — Acuda, sinhá! Estão pulando pela janela! Olhe quem está atrás de mecê!

            Um bichinho de óculos, que é um verdadeiro “felómeno…”

            Narizinho explicou:

            — Não tenha medo, vovó. Este é o doutor Caramujo, o grande médico que fez Emília falar. Tem pílulas para todas as doenças. É até capaz de curar aquele pinto sura que está com estupor.

            Dona Benta havia voltado o rosto e visto atrás dela o doutor Caramujo, de óculos, a lhe fazer um cumprimento muito amável. E o seu espanto, que já era grande, cresceu ainda mais ao ver surgir na janela um peixinho vestido de rei.

            — Este é o meu esposo, o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Clara — explicou Narizinho, fazendo as apresentações. E esta senhora, príncipe, é a minha querida vovó, dona Benta de Oliveira.

            Com uma gentil cortesia, o príncipe murmurou, todo amável:

            — Tenho muita honra em conhecê-la, minha senhora e peço-lhe permissão para a tratar de vovó também.

            A pobre velha por um triz que não desmaiou. Abanou-se muito aflita, uff, uff!… Depois, voltando-se para a negra:

            — Ele fala mesmo, Nastácia! Fala tal qual uma gente…

            A preta fez o sinal da cruz. Enquanto isso os outros fidalgos da corte foram pulando. Pulou o venerando Bernardo Eremita. Pulou a senhorita Sardinha. Pulou dona Aranha Costureira. Pulou o major Agarra-e-não-larga-mais. Cada um que pulava era um novo berro de tia Nastácia.

            — E uma sardinha agora, sinhá! — ia ela exclamando. — E agora uma aranha! E agora um sapo! O mundo está perdido…

            Por fim não aguentou mais: disparou para a cozinha. Dona Benta, porém, foi se acostumando, e dali a pouco já não estranhava coisa nenhuma. Começou até a achar uma graça-enorme em tudo aquilo.

            — Você tem razão, minha filha — disse ela por fim. – Esse mundo em que você e Pedrinho vivem é muito mais interessante que o nosso.

            E ferrou numa prosa comprida com o doutor Caramujo a propósito da doença do pinto sura. Enquanto isso Narizinho ia mostrando ao seu amado príncipe as coisas da sala. Mostrou o relógio da parede, mostrou os pratos do armário, mostrou o pote d’água. O que mais mexeu com o peixinho foi um guarda-chuva que estava a um canto.

            — Para que serve isto? — perguntou ele.

            — Para a gente não se molhar — respondeu a menina.— Por que não o levaram, então, na viagem ao fundo do mar?

            Tanta graça achou a menina nessa pergunta, que não resistiu à tentação de agarrá-lo e beijá-lo na testa.

            — Você é um burrinho, sabe, príncipe? Um amor de burrinho…

            Como ignorasse o que queria dizer burrinho, o príncipe não se ofendeu. Depois, notando a ausência do Visconde de Sabugosa e do marquês de Rabicó, pediu -notícias.

            — O Visconde levou a breca — respondeu a menina. — Voltou da viagem ao fundo do mar tão encharcado que tive de pendurá-lo no varal de roupa para enxugar.

            Mas ficou mal pendurado. Deu o vento e caiu e ficou esquecido num canto por muito tempo. Resultado: deu nele uma doença esquisita chamada bolor. Ficou todo verdinho, coberto dum pó que sujava o assoalho. Embrulhei-o, então, num velho fascículo das Aventuras de Sherlock Holmes que andava rodando por aí e o botei não sei onde. Com certeza já morreu…

            — Que horrível desgraça! — exclamou o príncipe seriamente compungido.

            — Logo que voltar ao reino hei de decretar luto oficial por sete dias.

            — Não vale a pena, príncipe! O nosso Visconde já andava meio maluco com as suas manias de sábio. Ficou tão científico, que ninguém mais o entendia. Só falava em latim, imagine! Logo chega o tempo da colheita de milho e eu arranjo um Visconde novo.

            — E o senhor marquês?

            Narizinho teve receio de contar que fora Rabicó o ladrão da coroinha do príncipe. Limitou-se a dizer que como estivesse emagrecendo muito, tia Nastácia o pusera num chiqueiro para engordar.

            — Muito simpático o marquês — disse o príncipe por amabilidade. — Também acho muito simpática a senhora marquesa.

            — Eu quero tanto bem à Emília — explicou Narizinho – que tenho vontade de desmanchar o seu casamento com o marquês para casá-la com o gato Félix.

            Emília não está sendo feliz no primeiro casamento.

            — Por que, se não é indiscrição?

            — Os gênios não se combinam. Além disso, Emília não se casou por amor, como nós. Só por interesse, por causa do título. Emília não é mulher para Rabicó. Merece muito mais. Merece um senhor sacudido e valente como o gato Félix. É verdade que ele está a serviço da corte?

            O príncipe mostrou-se surpreso.

            — Gato Félix? — disse franzindo a testa. — Não conheço esse freguês…

            — Como não, se foi ele quem trouxe a notícia da sua visita, príncipe?

            — Não pode ser! Mandei o recado por uma sardinha…

            Narizinho ficou a cismar. Lembrou-se de que quando dera o beijo no focinho do gato sentira um cheiro de sardinha. “Querem ver que ele comeu a mensageira do príncipe com o recado e tudo?” — pensou consigo. Nada disse, porém, para não entristecer o seu querido maridinho. E, mudando de assunto, convidou-o a dar uma volta pelo sítio.

 

3 – Tia Nastácia e a Sardinha

            Tia Nastácia também havia perdido o medo aos bichinhos depois que viu que não mordiam. Chegou até a ficar amiga íntima da senhorita Sardinha, ou Miss Sardine, como era chamada no reino, por ter nascido nos mares que rodeiam a Terra Nova, perto do Canadá. Como boa norte-americana, Miss Sardine mostrava-se muito segura de si. Não era acanhada como as outras. Fazia o que lhe dava na cabeça, tornando-se famosa no reino pelas suas excentricidades. Uma delas consistia em dormir dentro duma latinha, em vez de dormir na cama. “Estou praticando para a vida futura”, costumava dizer com um sorriso melancólico. A vida futura das sardinha, como todos sabem, não é no céu, mas dentro de latas… Miss Sardine fez grande camaradagem com tia Nastácia. Logo que chegou foi se metendo pela cozinha adentro, a examinar tudo com uma curiosidade de mulher velha. E não parava com as perguntas.

            — Que monstro esquisito é este? — perguntou mostrando o fogão.

            — Isso se chama fogão — respondeu a preta.

            — E essa coisa vermelha que ele tem dentro?

            — Isso se chama fogo.

            — E para que serve?

            — Serve para queimar o dedinho de quem bole com ele.

            E tia Nastácia dava risadas gostosas, vendo a cara de admiração que Miss Sardine fazia.

            Em certo momento trepou a uma prateleira. Pôs-se a remexer em tudo. Enfiou a cabecinha dentro do vidro de sal e provou.

            — Hum! Estou conhecendo este gosto!…

            — Isso é farinha lá da sua terra; vem do mar — explicou a preta.

            Provou depois uma pitadinha de açúcar, achando tão bom que pediu para levar um pacote.

            Quando destampou o vidro de pimenta-do-reino em pó, tia Nastácia a advertiu:

            — Cuidado! Isso arde nos olhos.

            Antes não avisasse! Miss Sardine assustou-se, escorregou e caiu de ponta cabeça dentro do vidro de pimenta. Aquilo foi um pererecar e berrar de meter dó

            — Acuda! Estou cega…

            A negra, muito aflita, tirou-a de dentro do vidro e lavou-a na bica d’água, dizendo:

             Bem feito! Quem manda ser tão reinadeira? Eu logo vi que ia acontecer alguma… Miss Sardine não a ouvia, continuando a gritar e espernear.

             Acuda! Está pegando fogo nos meus olhos! Estou cega, não enxergo nada!…

             Isso passa — consolou a preta. — Tenha um pouco de paciência, menina.

            Muito pior seria se tivesse caído dentro da frigideira de gordura quente. Por uns instantes esteve ela assim, com os olhos a arder. Afinal foi sarando, e sarou, e abriu os olhos — primeiro um, depois o outro, depois os dois. Muito admirada de enxergar tão bem quanto antes, deu uma risadinha feliz.

            — Sarei! — exclamou Miss Sardine, piscando muito e olhando para tudo a fim de ver se os olhos estavam bons mesmo ou só meio bons. Depois voltou às perguntas, indagando que coisa era uma frigideira.

            Tia Nastácia ficou atrapalhada. Contar a um peixinho o que é frigideira até chega a ser judiação. De dó dela a negra deu uma resposta que a deixou na mesma.

            — Frigideira — disse — é uma panela rasa onde se põe uma certa água grossa, chamada gordura, que chia e pula quando tem fogo embaixo.

            — Que bonito! — exclamou Miss Sardine admirada. — Um dia hei de voltar aqui para passar uma hora inteira nadando nessa água que pula.

            A negra tapou a boca com as mãos para esconder a risada que ia saindo.

            Nesse momento dona Benta gritou lá do fundo do quintal:

            — Nastácia! Venha depressa…

            — Que será, meu Deus do céu? — exclamou a preta, correndo a ver do que se tratava.

            Encontrou dona Benta perto do galinheiro, em conferência com o doutor Caramujo a respeito da doença do pinto sura. Assim que chegou, dona Benta disse:

            — Nastácia, veja se me pega o pinto sura.

            — Para que, sinhá? — perguntou a preta estranhando a ordem.

            — O doutor Caramujo quer dar-lhe uma das suas milagrosas pílulas. Diz que não há melhor remédio para estupor de pintos suras.

            Tia Nastácia abriu a boca. Seria possível que aquele bichinho cascudo entendesse até de pílulas?

            — Ele está mangando com mecê, sinhá! Onde já se viu caramujo entender de remédios? É impostoria dele, sinhá. Não acredite.

            — Eu também estou duvidando e por isso quero tirar a prova. Pegue o pinto.

            Resmungando que o mundo estava perdido, foi tia Nastácia em procura do pinto. Pegou-o e trouxe-o.

            — Agora preciso dum canudinho — disse o doutor Caramujo.

            — Só sei dar pílulas a pinto pelo sistema do canudo.

            A negra foi resmungando procurar o canudinho. Trouxe-o. O doutor Caramujo explicou então como se fazia. Enfiava-se o canudinho na garganta do pinto; punha-se a pílula dentro do canudinho; depois era só assoprar.

            — Ora veja! — exclamou tia Nastácia sacudindo a cabeça. – Uma coisa tão simples e eu nunca me lembrei! Estou vendo que esses bichinhos do mar são mais sabidos do que a gente, sinhá.

            A pílula foi colocada dentro do canudinho e o canudinho foi enfiado dentro da garganta do pinto.

            — Preciso agora duma pessoa que assopre. Se não houver pessoa assopradeira, um fole serve.

            — Assopre, Nastácia! — mandou dona Benta. Tia Nastácia agachou-se, pôs a boca na ponta do canudinho e ia assoprar quando deu um berro, erguendo-se a tossir como uma desesperada.

            — Que aconteceu, Nastácia?

            A resposta foi uma careta de quem está engasgado com alguma coisa amarga.

            Depois falou.

            — Aconteceu, sinhá, que o pinto assoprou primeiro e quem engoliu a pílula fui eu!…

            Dona Benta não pôde deixar de rir-se; a negra, porém, não achou graça nenhuma, e até se mostrou apreensiva, com medo de que a pílula lhe fizesse mal.

            — Não fará mal nenhum — asseverou o doutor Caramujo. – Até pode curar alguma moléstia que a senhora tenha, lá por dentro sem saber.

            E assim foi. Tia Nastácia sarou duma célebre “tosse de cachorro” que a vinha perseguindo havia duas semanas, e tanta fé passou a ter nas pílulas do doutor Caramujo, que as receitava para todo mundo.

            Até para o Chico Orelha, um pobre sem orelhas que por lá aparecia às vezes a pedir esmolas.

            — Tome uma dúzia, seu Chico, que lhe nasce um par de orelhas novas ainda mais bonitas que as que lhe cortaram.

 

4 – Os segredos da Aranha

            Dona Aranha, apesar de manca, jamais deixara de acompanhar o príncipe nas suas viagens — nem ela, nem o doutor Caramujo. Médico tem sempre serviço numa viagem e costureira também — um botão que cai, um pé de meia que fura. Por isso dona Aranha também viera.

            Trabalhadeira como ninguém, assim que chegou foi logo para o quarto de costuras examinar os apetrechos de dona Benta — a cestinha, a almofadinha de alfinetes, os agulheiros, os carretéis. Só não gostou da máquina.

            — Muito pesada e complicada — disse para Emília, que era a mostradeira de tudo.

            Vendo-se só com a Aranha, a boneca regalou-se de fazer quantas perguntinhas quis.

            — Acho muito bonito esse seu sistema de trazer o carretel dentro da barriga — disse ela. — Só não compreendo como a senhora faz para engolir um carretel…

            — Eu não engulo carretéis, menina — explicou a Aranha. – Nós nascemos com o carretel dentro.

            — E quando acaba?

            — Não acaba nunca.

            — Hum! Já sei! A senhora tem fábrica de linha na barriga, não é?

            — Deve ser. Nunca entrei dentro de mim para saber.

            — Pois eu sei o que há dentro de mim. É só macela. Quando fiquei com a perna seca, tia Nastácia me consertou e eu vi. Ela pôs só macela da bem amarelinha e cheirosa.

            — E seu marido, o marquês? — perguntou dona Aranha. — Também é cheio de macela?

            — Creio que não, porque Rabicó é diferente de mim em tudo. Por exemplo: ele come e eu não como. Só como de mentira, por brincadeira.

            — Não come? — exclamou dona Aranha muito admirada. — É a primeira pessoa que ouço dizer isso…

            — Nunca comi coisa alguma — e sinto bastante, porque comer parece uma coisa muito gostosa. Rabicó quando come arregala os olhos de gosto, e grunhe se alguém se aproxima. A vaca mocha, essa até baba quando come um sabugo de milho.

            — Pois lá no mar não existe uma só criatura que não coma. E um come o outro. A gente precisa andar com as maiores cautelas, espiando de todos os lados e escondendo-se quando vê algum peixe. Minha mãe foi comida por uma garoupa.

            — Coitada! — exclamou Emília deveras compungida. — E era também costureira?

            — Era sim. Todas as aranhas são costureiras.

            — E tinha também carretel na barriga?

            — Está claro. Basta ser aranha para ter carretel na barriga. — E de que cor era a linha?

            — A cor não varia. É sempre a mesma para todas as aranhas.

            — Que pena! — exclamou Emília triste. — Gosto muito da cor vermelha e se soubesse duma aranha de linha vermelha, iria morar com ela.

            — Para quê?

            — Para ver. Para sentar debaixo da jabuticabeira e ver aquela linha tão linda que sai, sai, sai e não se acaba mais…

            Enquanto Emília ia dizendo suas asneirinhas, dona Aranha, para não perder tempo, cerzia meias. Cerzia tão bem que não havia quem fosse capaz de perceber o cerzido.

            Admirada da perfeição do trabalho, Emília disse:

            — Se a senhora se mudasse para a cidade havia de ganhar um dinheirão.

            — E que faria do dinheiro?

            — Oh, muitas coisas! Podia comprar uma casa, podia comprar um guardachuva. Pedrinho diz que é muito bom ter dinheiro.

            — E ele tem muito?

            — Muito! Pedrinho é bastante rico. Tem um cofre com mais de cinco reais dentro.

            — E para que quer tantos reais?

            — Diz que vai comprar um revólver. Eu, se tivesse dinheiro, sabe o que comprava? Um trem de ferro! Não há nada de que eu goste tanto como o trem de ferro…

            — Por quê?

            — Porque apita. A senhora já ouviu apito de trem?Nesse ponto a conversa foi interrompida por um recado de Narizinho, ordenando que Emília se vestisse para sair a passeio.

            — Adeus, dona Aranha. Narizinho está precisando de mim. Vai passear conosco ou fica?

            — Fico. Estou com fome. Quero ver se apanho umas três moscas.

            — Não use vinagre — aconselhou Emília retirando-se. – Tia Nastácia diz sempre que não é com vinagre que se apanham moscas.

 

5 – Valentias

            Pedrinho fora dar uma volta com o capitão dos couraceiros vindos para a guarda do príncipe. Esses valentes soldados tiveram ordem de ficar fora da casa, para que tia Nastácia não se assustasse. Pedrinho fez logo boa camaradagem com o capitão, que era grande contador de proezas.

            Contou duma terrível luta entre dois espadartes e duas baleias, a que ele assistiu de pertinho. Sua valentia consistira nisso — assistir de pertinho. Contou depois as suas próprias façanhas, lutas com lagostas, ataque a um filhote de peixe espada.

            Pedrinho tinha paixão por histórias de caçadas, guerras, lutas de boxe — aventuras de terra e mar, como dizia dona Benta. Ouvia com interesse as histórias do couraceiro e contava outras. Contou histórias de onças, tigres-de-bengala, leões do Uganda, jacarés do Amazonas.

            — E qual o bicho da terra que acha mais perigoso — perguntou o couraceiro, que ignorava completamente tudo que não se referia ao mar. Dizem que é o leão.

            — É e não é — respondeu Pedrinho para mostrar que entendia do assunto. — É porque é, e não é porque com uma boa bala na cabeça qualquer caçador dá cabo dum leão. Para mim o bicho mais perigoso é uma tal vespa que quando morde incha o lugar e arde que nem fogo.

            O couraceiro não fazia a menor idéia do que fosse uma vespa.

            — Mas com uma bala na cabeça qualquer caçador não dá cabo duma vespa? — perguntou.

            — Se acertar, sim — respondeu o menino. Mas ainda está para existir um caçador que acerte uma bala na cabeça de vespa.

            O couraceiro arregalou os olhos.

            — Só se são encantadas…

            — Pior que isso. São deste tamanhinho, e voam como umas danadas. Certa vez uma ferrou na ponta da língua de Narizinho. A coitada viu fogo! Vespa, sim, é um bicho danado. Eu, por exemplo, que não tenho medo de coisa nenhuma, confesso que respeito as vespas — e não sinto vergonha nenhuma de dizer isso.  

            O couraceiro, um dos caranguejos mais gabolas do mar, deu uma risada de desafio.— Pois eu só queria encontrar-me com uma! Tenho tirado a prosa de muito bichinho valente e tirava a das vespas também.

            Pedrinho riu-se.

            — Sua valentia vem da couraça, capitão. Tire a casca e venha lutar com uma vespa, se é capaz!

            Ofendido com o juízo que o menino fazia dele, o couraceiro replicou:

            — Saiba que já me bati com uma grande lagosta e a venci em poucos

minutos.

            — Grande coisa! Pois eu já dei no Chiquinho Pé-de-Pato, que é o moleque mais temido lá da cidade, e no entanto corro de vespa. Corro e hei de correr, e nunca terei vergonha de contar isso, porque medo de vespa é o único medo que não desmoraliza ninguém.

            Estavam nesse ponto quando Emília passou, muito requebrada no seu vestido de teia cor-de-rosa. Ia tão absorvida em altos pensamentos que nem os percebeu.

            — Quem é esta senhora?

            — Pois é a marquesa de Rabicó, não sabe? Uma das damas mais ilustres dos tempos modernos.

            — Hum! — fez o couraceiro lembrando-se. — Se não me engano esteve lá no reino há muito tempo, em companhia de Narizinho. Mas naquela época usava camisola e tinha os cabelos pretos.

            — Emília muda muito, não é como vocês que são sempre os mesmos. Cada vez que Narizinho se enjoa da cara dela, muda. Muda tudo. Muda a boca mais para baixo ou mais para cima. Muda as sobrancelhas, muda os olhos. Houve até uma vez em que Emília passou sem olhos cinco dias.

            — Como assim?

            — Narizinho estava mudando os olhos dela, que são de retrós, e já tinha arrancado os velhos para pôr novos, quando viu que não havia mais retrós no carretel. Até que alguém fosse à cidade e trouxesse mais retrós, a coitada ficou sem olhos, ceguinha num canto, sem enxergar coisa nenhuma…

            Apesar de ser um guerreiro de coração duro, o caranguejo murmurou apiedado:

            — Coitada! Como não havia de ter sofrido…

            — Mas também — continuou Pedrinho — quando a linha veio e Narizinho botou-lhe olhos novos, bem arregalados, Emília tirou a forra. Passou o dia inteiro sem fazer outra coisa senão olhar, olhar, olhar.

            — Tem filhos? — perguntou ainda o curioso capitão.

            — Não. Narizinho não quer. Emília é sua companheira de passeios e viagens.

            Se tivesse filhos, teria de ficar em casa, a dar de mamar às crianças, a lavar fraldinhas — e adeus passeios…

 

6 – Os espantos do príncipe

             Narizinho e o príncipe, de braços dados, percorriam o sítio. Já haviam visitado o chiqueirinho de Rabicó. Estavam agora sentados na grama, à espera da Emília para irem ver a vaca mocha. O príncipe não fazia a menor idéia do que fosse uma vaca e mostrava-se impaciente por ser apresentado àquela.

            — A vaca mocha — ia explicando a menina — é a senhora mais importante aqui do sítio — depois de vovó e tia Nastácia. Muito bondosa, incapaz de fazer mal a um mosquito.

            — Mas como então devorou o pai, a mãe e todos os parentes do senhor Visconde de Sabugosa?

            — É que eles eram sabugos e sendo sabugo a mocha não perdoa mesmo. Agarra e vai mascando. Mas para gente como nós, gente de carne, ela não faz nada.

            Vaca não come carne, sabe? Nem minhoca! Pedrinho já fez a experiência. Pôs-lhe uma gorda minhoca no cocho. Sabe o que ela fez? Virou a cara de lado e cuspiu de nojo.

            O príncipe lá no seu íntimo achou que a vaca devia ser uma criatura de muito mau gosto. Comer sabugo e ter nojo de minhoca era para ele a coisa mais absurda do mundo. Nisto chegou Emília.

            — Que demora! — disse Narizinho. — Estamos aqui à sua espera faz um século. Que esteve fazendo?

            — Ajudando dona Aranha a remendar suas meias, sabe? Oh, como dona Aranha remenda bem! Cerze com a maior perfeição. Se eu fosse você não deixaria dona Aranha voltar para o reino.

            E dirigindo-se ao príncipe:— Por que não dá dona Aranha para Narizinho? Apesar de ser princesa, Narizinho anda sempre de meias furadas por falta duma boa aranha aqui no sítio.

            — Começam as inconveniências! — advertiu a menina fazendo carranca. — Anda com meias furadas o seu nariz. Vamos visitar a vaca mocha que é o melhor.

            Foram em direção à cocheira. Assim que o príncipe deu com a vaca, estacou, de olhinhos muito arregalados. Nunca supôs que houvesse um bicho tão fora de propósito.

            — Pois é esta a mocha, príncipe — disse a menina. — Veja que respeitável senhora é, que pêlo macio, que pontudos chifres. Mocha quer dizer sem chifres. Esta é a única exceção que há no mundo, isto é, aqui no sítio.

            O príncipe olhava, olhava, sem entender muito bem. Depois entrou com perguntas.

            — E que é isto que ela tem pendurado aqui embaixo?

            — São as tetas — explicou a menina. — Teta quer dizer torneirinha de leite.

            Tia Nastácia espreme essas tetas para tirar uma água branca chamada leite. Todas as manhãs eu tomo um copo desse leite bem quentinho e espumante, tirado justamente dessas torneirinhas.

            — E isto aqui ? — perguntou o príncipe — apontando com o cetro para a cauda.

            — Isso é o espantador de moscas. Serve para espantar as moscas que vêm brincar em cima dela.

            Querendo também mostrar sua ciência, Emília acrescentou:

            — Esse espantador foi pregado aí por tia Nastácia. Quando a mocha nasceu não tinha nada atrás.

            — Não acredite, príncipe! Emília está bobeando você. Todas as vacas já nascem de espantador, como todos os peixes já nascem de cauda.

            Tão interessante achou o príncipe aquele comprido apêndice movediço com mecha de cabelo na ponta, que se declarou disposto a adotar a moda no reino.

            Depois examinou atentamente os chifres.

            — Também são espantadores de moscas? — perguntou.

            — Não! — respondeu a menina. — Isso aí são espantadores de gente. Chamam-se chifres e servem para chifrar.

            — Chifrar? Que é chifrar? — indagou ele, de carranquinha.

            A menina deu uma risada gostosa.

            — Chifrar, príncipe, é dar chifradas, entende? dar uma cabeçada com os dois espetos tortos na testa. Mas não tenha medo. A mocha não chifra ninguém — só cachorro que vem latir perto dela.

             — E estas quatro estacas? — perguntou o príncipe apontando para as pernas da mocha.

            Narizinho deu outra risada ainda mais gostosa.

             — Como é burrinho este meu maridinho! Pois não vê que são as pernas? Sem isso, como poderiam as vacas ficar de pé e andar?

            Emília meteu o bedelho.

             — Essa é boa! Quantos bichos não há sem pernas e que andam muito bem?

             — Diga um, vamos!…

             — O relógio de dona Benta. Não tem pernas e ela diz sempre: “Este relógio, apesar de ser mais velho do que eu, anda muito bem.”

             A menina olhou para Emília com cara de dó.

             — Que pena! — disse. — Tão “inteligente” e não aprende nunca a diferenciar s criaturas vivas das coisas inanimadas…

             O príncipe não tirava os olhos da vaca, sempre admirado. Quis saber como é que ela fabricava o leite.

             — Está aí uma coisa que não sei — respondeu a menina. – A mocha come capim, come abóbora, come sabugo, mastiga tudo muito bem, engole — e sai leite do outro lado pelas torneirinhas. Tudo quanto come vira em leite. Se comer o Visconde, vira-o em leite também. É um mistério que não entendo.

             — Pois eu entendo! — gritou Emília. — É que a mocha todos os dias come mandioca. Leite, na minha opinião, é mandioca líquida.

             — Que sandice, Emília! Que bobagem! Pois não vê que Rabicó também come mandioca e não dá leite?

             — Isso é porque Rabicó não tem torneirinhas. Se tia Nastácia pusesse nele quatro torneirinhas, juro que saía leite.

             — Desculpe, príncipe — disse a menina voltando-se para ele. Esta nossa amiga marquesa possui uma torneirinha de asneiras. Quando a abre, ninguém pode com a vida dela.

            Mas Escamado não ouvia. Continuava de olhos pregados na mocha. Por fim mostrou desejos de levá-la para o reino.

             — Impossível, príncipe! — respondeu Narizinho muito pesarosa. — Em primeiro lugar, mocha é de vovó e vovó não deixa; em segundo lugar, beberia pelo caminho tanta água do oceano que o leite ficaria salgado.

             — Que pena! Esta senhora faria um grande sucesso na minha corte.

            Emília meteu o bedelho outra vez.

             — Aposto que dona Benta deixa! — berrou ela. — Aposto que se o príncipe der uma boa baleia em troca, dona Benta deixa. As baleias também dão leite.

            A menina pôs as mãos na cintura.

            — E onde iria vovó botar essa baleia? — perguntou ela muito séria.

            — Aqui na cocheira, ora essa! Se a mocha pode morar aqui por que não o poderia a baleia? Em que a tal baleia é melhor que a mocha, diga?

            Narizinho enjoou-se da burrice da Emília e enfiou-a de cabeça para baixo no bolso do avental. Justamente nesse instante a vaca deu um mugido.   O príncipe, que não esperava por aquilo, caiu para trás com o susto.

            — Coitadinho do meu maridinho !— exclamou a menina precipitando-se para erguê-lo. — Não precisa assustar-se assim, bobo. A mocha dá esses berros só de brincadeira — e ajudou-o a compor diversas escamas que haviam saído do lugar.

            O príncipe, entretanto, não quis mais saber de histórias. Pálido ainda do susto, tratou de voltar para casa.

            — Sofro do coração — explicou — e se esta senhora berra outra vez, sou  capaz de cair em desmaio. Vamos embora…

 

7 – O desastre

            Voltaram de braços dados, Narizinho aborrecida com o berro da vaca e o príncipe a se queixar de palpitações do coração. Assim que alcançaram o terreiro, novo susto veio agravar o seu estado de saúde.

            Ouviam-se dentro da casa gritos e choradeira.

            — Que terá acontecido? — murmurou a menina, apreensiva.

            Largou do príncipe e foi a correr, com o pressentimento dalguma grande desgraça.

            — Que é? Que aconteceu? — gritou logo ao entrar.

            Não obteve resposta. Todos estavam chorando e não lhe deram tempo à pergunta. A menina olhou espantada para os personagens presentes, dirigindo-se à cozinha em seguida. Lá encontrou tia Nastácia também chorando.

            — Que é que aconteceu, tia Nastácia? — perguntou aflita.

            A negra respondeu, enxugando as lágrimas:

            — Nem queira saber, Narizinho! Antes vá-se embora…

            Como a menina insistisse, a negra não teve remédio e contou.

            — Pois imagine que Miss Sardine, desde que o príncipe chegou, se meteu aqui na cozinha todo o tempo, a coitada. Remexeu em tudo, provou o sal, o açúcar, e até caiu no pote de pimenta-do-reino. Eu salvei ela, dei um banhinho nela e pus ela ali no canto para secar. No começo, enquanto a pimenta estava ardendo, ficou muito sossegada. Mas depois que a ardidura passou, principiou a reinar outra vez. Eu estava sempre avisando: “Não mexa aí! Não chegue perto do fogo! Não seja tão reinadeira que de repente acontece qualquer coisa para mecê!” Mas era o mesmo que estar falando pra aquele pau de lenha ali. Fazia uma carinha de caçoada e continuava. Se não aconteceu desgraça foi porque meus “zóio” não saía de cima dela, vigiando. Mas de repente sinhá me chamou para ouvir uma história do doutor Caramujo. Fui e deixei Miss Sardine sozinha…

            — E que aconteceu? — indagou Narizinho surpresa.

            A negra continuou, depois de enxugar as lágrimas no avental.

            — Aconteceu o que eu tinha medo que acontecesse. A coitadinha, assim que saí, trepou no fogão para espiar a frigideira de gordura. Achou linda, com certeza, aquela água que pulava e chiava — e deu um pulo para dentro da frigideira, pensando que fosse uma pequena lagoa. Gordura fervendo, imagine!…

            — Coitadinha! — berrou a menina horrorizada. — Que contas vamos agora dar ao príncipe? Miss Sardine era a dama de mais importância lá no reino — a única que tinha entrada na corte. Onde está ela, Nastácia?

            — Está ainda na frigideira — respondeu a negra. — Frita! Frita que nem um lambari frito…Não podendo conter as lágrimas, a menina rompeu num berreiro. O príncipe ouviu lá de fora. Reconheceu o choro e veio a correr, aflitíssimo. Quando soube da tragédia, desmaiou. Corre que corre! Chama o doutor Caramujo! Não acham o doutor Caramujo!

            Grita aqui! Berra de lá! Desmaia adiante! Que confusão horrível foi!…

            Enquanto isso tia Nastácia tirava da frigideira o cadáver de Miss Sardine para mostrá-lo a dona Benta.

            — Veja, sinhá! Tão galantinha que até depois de morta ainda conserva os traços… e a negra cheirou a sardinha frita, e depois a provou, e ficou com água na boca e comeu-lhe um pedacinho, e disse arregalando os olhos: — Bem gostosinha, sinhá. Prove… Muito melhor que esses lambaris aqui do rio…

            Dona Benta recusou e tia Nastácia, ainda com lágrimas, acabou comendo a sardinha inteira.

            Voltando a si do desmaio, o príncipe recaiu em profunda tristeza. Não quis comer coisa nenhuma das comidinhas preparadas para ele. Não quis continuar no passeio pelo sítio. Só queria uma coisa: voltar.

            Dona Benta sentiu muito e disse:

            — Pois, senhor príncipe, nossa casa está sempre às suas ordens. Quando quiser aparecer, não faça cerimônia, apareça.

            — Muito obrigado — respondeu o peixinho com voz sumida.

            — Também eu faço muito empenho em que a senhora nos apareça lá pelo reino.

 

8 – O novo desastre

            — Isso é mais difícil. Estou muito velha e perrengue. Poderei molhar-me pelo caminho a adoecer.

            Emília, que ainda estava dentro do bolso de Narizinho, espichou para fora a cabeça.

            — Molhar como? — disse ela muito espevitadamente. — Pois a senhora vai de guarda-chuva!…

            Narizinho empurrou-a outra vez para o fundo do bolso e, voltando-se para dona Benta, perguntou:

            — Que presente poderemos dar ao príncipe, vovó? Ele não pode voltar de mão abanando.

            — Você é que sabe o gosto dele, minha filha.

            — Escamado apreciou muito a vaca mocha, mas isso não convém dar. Na minha opinião acho que o melhor é dar… é dar…

            Engasgou. Não sabia o que dar. Nisto apareceu Pedrinho, de volta do passeio com o capitão da guarda. Consultado, resolveu o problema imediatamente. — Muito simples — disse ele. – Há aquelas quatro rodinhas que sobraram do despertador que consertei. Roda é coisa que não existe no oceano. Juro que o príncipe vai ficar contentíssimo.

            Todos aprovaram a idéia, e Escamado recebeu de presente as quatro rodinhas como lembrança das quatro pessoas do sítio.

            Na hora de partir houve choro. Até Emília fugiu do bolso da menina, aparecendo com duas lágrimas da torneira nos olhos de retrós. Aproximou-se do príncipe, muito cautelosa para que Narizinho não visse, e cochichou-lhe disfarçadamente:

            — Se o senhor príncipe me conseguir uma boa aranha costureira, eu arranjo jeito de dona Benta trocar a mocha por um tubarão…

            Terminadas as despedidas, lá se foi o príncipe com a sua comitiva, todos de nariz vermelho de tanto chorar.

            Dona Benta, tia Nastácia, Narizinho e Emília à janela acenavam saudosamente com os lenços.

            — Adeus! Adeus!

            Depois que desapareceram ao longe, a primeira a falar foi Narizinho.

            — O que vale é que o gato Félix não tarda por aí. Se não fosse isso, não sei o que seria de nós — nesta tristeza das saudades…

            Nem bem acabou de falar e o gato Félix surgiu no terreiro, a miar aflito.

            — Acudam!… O príncipe está se afogando… Todos correram ao encontro do gato, sem compreenderem o que ele dizia.

            — Afogando como, se o príncipe é peixe? — exclamou a menina.

            — Sim, mas passou toda a tarde fora d’água e desaprendeu a arte de nadar.

            — Socorro! — berrou Narizinho, disparando como louca na direção do rio para salvar o seu amado príncipe…

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