Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 43, 44, 45, 46, 47, 48 e 49

 

43 – Os dois ladrões

         Dois ladrões de animais furtaram certa vez um burro, e como não pudessem reparti-lo em dois pedaços surgiu a briga.

         – O burro é meu! – alegava um. – O burro é meu porque o vi primeiro…

         – Sim – argumentava o outro –, você o viu primeiro; mas quem primeiro o segurou fui eu. Logo, é meu…

         Não havendo acordo possível, engalfinharam-se, rolaram na poeira aos socos e dentadas. Enquanto isso um terceiro ladrão surge, monta no burro e foge de galope.

         Finda a luta, quando os ladrões se ergueram, moídos da sova, rasgados, esfolados…

         – Que é do burro? Nem sombra!

         Riram-se – risadinha amarela – e um deles, que sabia latim, disse:

         – Inter duos litigantes tertius gaudet, que quer dizer: quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto.

                                               *****

            – Isso já me aconteceu uma vez – disse Pedrinho. – Briguei lá na escola por causa de uma pera, e quando terminou a briga, que é da pera? Estava no papo do Zezico, filho do Totó padeiro.

            – E você deu também a tal risadinha amarela…

            – Dei mas foi um tal murro no ladrão que ele quase vomitou a pera. Quem riu amarelo foi ele.

            – Que adiantou? Ficou do mesmo jeito sem a pera.

            – E o gosto? Uma forra dessas vale três peras.

            Emília concordou.

 

44 – A mutuca e o leão

         Cochilava o leão à porta de sua caverna no momento em que a mutuca chegou.

         – Que vens fazer aqui, miserável bichinho? Some-te, retira-te da presença do rei dos animais.

         A mutuca riu-se.

         – Rei? Não és rei para mim. Não conheço tua força, nem tenho medo de ti.

         – Vai-te, excremento da terra!

         – Vou mas é tirar-te a prosa – disse a mutuca.

         E atacou-o. Atacou-o a ferroadas com tamanha insistência que o leão desesperou. Inutilmente espojava-se, e sovava-se a si próprio com a cauda ou tabefes das patas possantes. A mutuca fugia sempre e, ora no focinho, ora na orelha, ora no lombo, fincava-lhe sem dó o agudo ferrão. Farta por fim de torturar o orgulhoso rei, a mutuca bazofiou:

         – Conheceste a minha força? Viste como de nada vale para mim o teu prestígio de rei? Adeus. Fica-te aí a arder que eu vou contar a toda a bicharia a história do leão sovado pela mutuca.

         E foi-se. Logo adiante, porém, esbarrou numa teia, enredou-se e morreu no ferrão da aranha.

         São mais de temer os pequenos inimigos do que os grandes.

                                                                       *****

            – Grande verdade! – exclamou o menino. – Um tigre é menos perigoso que certos micróbios, e aqui na roça eu só tenho medo de uma coisa: vespa!

 

45 – A fome não tem ouvidos

            Caíra um triste sabiá nas unhas de esfaimadíssimo bichano. E gemendo de dor implorava:

         – Felino de bote pronto e afiadas unhas, poupa-me! Repara que, se me devoras, cometes um crime de lesa-arte, pois darás cabo da garganta maravilhosa de onde brotam as mais lindas canções da selva. Queres ouvir uma delas?

         – Tenho fome! – respondeu o gato.

         – Queres ouvir uma canção que já enlevou as próprias pedras, que são surdas, e fez exclamar à bruta onça: “Este sabiá é a obra-prima da natureza!”.

         – Tenho fome! – repetiu o gato.

         – Tens fome, bem vejo, mas isso não é razão para que destruas a maravilha da floresta, matando o tenor cujos trinos criam o êxtase na alma dos mais rudes bichos. Queres ouvir o gorjeio em lá menor da minha última sinfonia?

         – Tenho fome! – insistiu o gato. – Sei que tudo é assim como dizes, mas tenho fome e acabou-se. Para satisfazê-la eu devoraria a própria música, se ela me aparecesse encarnada em petisco. E isso, meu caro sabiá, porque a fome não tem ouvidos… E comeu-o.

                                                                       *****

            – Acho muito “literária” esta fábula, vovó! – disse Narizinho. – Não há sabiá que fale em “felino de bote pronto”, nem em “crime de lesa-arte”, coisas que nem sei o que são. Ponha isso em literatura sem aspas.

            Dona Benta explicou que “felino” é um adjetivo relacionado a gatos, onças, tigres, panteras, e todos os mais “felídeos”.

            – E que é felídeo?

            – É a família dos mamíferos carniceiros que os sábios chamam felis. Há o felis catus, que é o gato. Há o felis pardus, que é o leopardo. Há o felis onça, que é a onça… São os felinos.

            – E crime de lesa-arte?

            – É um crime que lesa ou prejudica a arte. Lesar significa “prejudicar”.

            – E por que a senhora botou essas “literaturas” na fábula?

            – Para que vocês me interpelassem e eu explicasse, e todos ficassem sabendo mais umas coisinhas…

            – E a fome não tem ouvidos mesmo?

            – Não tem, minha filha. Quando a fome aperta, o animal faminto come o que encontra. Há casos até de pais que têm comido os filhos, por ocasião das grandes fomes da humanidade…

 

46 – O olho do dono

         Um veadinho, fugindo aos caçadores, escondeu-se num estábulo. E pediu às vacas que o não denunciassem, prometendo-lhes em troca do asilo mil coisas. As vacas mugiram que sim e o fugitivo agachou-se num cantinho.

         Vieram à tarde os tratadores, com os feixes de capim e a cana picada. Encheram as manjedouras e saíram. Veio também, fiscalizar o serviço, o administrador da fazenda. Correu os olhos por tudo e foi-se.

         O veadinho respirou. – Vejo que este lugar é seguro – disse ele. – Os homens entram e saem sem perceber coisa nenhuma.

         Uma vaca, porém, o avisou:

         – O perigo, meu caro, é que apareça por aqui o bicho de Cem-Olhos…

         – Quê? – exclamou o veado. – Há disso?

         – Há sim. Chama-se Dono. É um que quando aparece tudo vê, tudo descobre, desde o menor carrapato do nosso lombo até o sal que o tratador nos furta. Se ele vem, amigo, tu estás perdido!

         Não demorou muito, surge Cem-Olhos. Vê aranhas no teto e interpela os homens da lida:

         – Por que não tiram isso?

         Vê um cocho rachado:

         – Consertem este cocho.

         Vê o chão mal limpo: – Vassoura, aqui!

         E está claro que também viu as pontas do chifre do veadinho.

         – Que história é essa? Chifre de veado entre vacas?…

         Aproximou-se e descobriu o mísero.

         – Uma espingarda! – gritou.

         E era uma vez um veadinho.

         O olho do dono engorda o cavalo.

                                                        *****

             – Malvado! – exclamou Narizinho vermelha de cólera. – O veadinho que o bruto matou com certeza era o filhote de Bambi…

            Emília também se indignou.

            – Ah, eu queria estar lá para dar um tiro de canhão na orelha desse homem! Matar o filhotinho de Bambi só porque ele se abrigou naquela porcaria de estábulo lá dele! Mas eu sei por que o bruto o matou…

            – Por que foi, Emília? – quis saber Dona Benta.

            – Pela mesma razão que o urubu matou o sabiá: de inveja. Inveja da lindezinha do filho de Bambi. Devia ser um sujeito horrendamente feio, com cara de coruja seca, três verrugas no nariz, orelhas de camelo do deserto, capenga, boca torta, pé espalhado, beiço rachado no meio, analfabeto, jacarepaguá. Feio assim, não aguentou ver lá na fazenda dele aquela belezinha de veado, um bambizinho de pelo macio, olhos de criança inocente, pernas que eram quatro mimos, focinho cor-de-rosa Bela Helena… Inveja, inveja só. Eu só queria que…

            – Pare, Emília! – disse Dona Benta. – A fábula não é para mostrar a feiura de um e a boniteza de outro – é só para frisar que quem é dono vê tudo, não deixa escapar coisa nenhuma.

            Mas de nada adiantou a advertência. Todos estavam indignados com o tal dono.

            E Emília teve uma ideia. Berrou:

            – Lincha! Lincha esta fábula indecente!

            Os outros acompanharam-na:

            – Lincha! Lincha!…

            E os três lincharam a fábula, único meio de dar cabo do matador do filhote de Bambi que estava dentro dela.

 

47 – Unha-de-Fome

         Depois de uma vida de misérias e privações, Unha-de-Fome conseguiu amontoar um tesouro, que enterrou longe de casa, num lugar ermo, colocando uma grande pedra em cima.

         Mas tal era o seu amor pelo dinheiro que volta e meia rondava a pedra e namorava-a como o jacaré namora os seus próprios ovos ocultos na areia. Isso atraiu a atenção de um vizinho, que o espionou e por fim lhe roubou o tesouro.

         Quando Unha-de-Fome deu pelo saque, rolou por terra desesperado, arrepelando os cabelos.

         – Meu tesouro! Minha alma! Roubaram minha alma!

         Um viajante que passava foi atraído pelos berros.

         – Que é isso, homem?

         – Meu tesouro! Roubaram o meu tesouro!

         – Mas morando lá longe você o guardava aqui, então? Que tolice! Se o conservasse em casa não seria mais cômodo para gastar dele quando fosse preciso?

          – Gastar do meu tesouro?! Então você supõe que eu teria a coragem de gastar uma moedinha só, das menores que fosse?

          – Pois se era assim, o tesouro não tinha para você a menor utilidade, e tanto faz que esteja com quem o roubou como enterrado aqui. Vamos! Ponha no buraco vazio uma pedra, que dá no mesmo. Que utilidade tem o dinheiro para quem só o guarda e não gasta?

                                                        ***** 

            – Muito certo – disse Dona Benta –, mas os usurários como esse Unha-de-Fome não raciocinam como as criaturas normais. O dinheiro para eles não é para ser trocado pelas coisas que tornam agradável a vida – é para ser acumulado. O maior prazer desses homens consiste em saber que possuem tesouros.

            – Pois acho que eles estão certos – disse Emília. – O que é de gosto regala a vida, como diz Tia Nastácia. Se o meu gosto é namorar o dinheiro em vez de gastá-lo, ninguém tem nada a ver com isso.

            – Mas o dinheiro é uma utilidade pública, Emília, e ninguém tem o direito de retirá-lo de circulação. Quem faz isso prejudica os outros.

            – Sebo para a circulação! – gritou Emília, que também era avarenta. Aquele célebre tostão novo que ela ganhou estava guardadíssimo. Sabem onde? No pomar, enterrado junto à raiz da pitangueira…

 

48 – O lobo velho

         Adoecera o lobo e, como não pudesse caçar, curtia na cama de palha a maior fome de sua vida. Foi quando lhe apareceu a raposa.

         – Bem-vinda seja, comadre! É o céu que a manda aqui. Estou morrendo de fome e se alguém não me socorre, adeus, lobo!…

         – Pois espere aí que já arranjo uma rica petisqueira – respondeu a raposa com uma ideia na cabeça.

         Saiu e foi para a montanha onde costumavam pastar as ovelhas. Encontrou logo uma, desgarrada.

         – Viva, anjinho! Que faz por aqui, tão inquieta? Está a tremer…

         – É que me perdi e tremo de medo do lobo.

         – Medo do lobo? Que bobagem! Pois ignora que o lobo já fez as pazes com o rebanho?

         – Que me diz?

         – A verdade, filha. Venho da casa dele, onde conversamos muito tempo. O pobre lobo está na agonia e arrependido da guerra que moveu às ovelhas. Pediu-me que dissesse isto a vocês e as levasse lá, todas, a fim de selarem um pacto de reconciliação.

         A ingênua ovelhinha pulou de alegria. Que sossego dali por diante, para ela e as demais companheiras! Que bom viver assim, sem o terror do lobo no coração! Enternecida, disse:

         – Pois vou eu mesma selar o acordo.

         Partiram. A raposa, à frente, conduziu-a à toca da fera. Entraram. Ao dar com o lobo estirado no catre, a ovelhinha por um triz que não desmaiou de medo.

         – Vamos – disse a raposa –, beije a pata do magnânimo senhor! Abrace-o, menina! A inocente, vencendo o medo, dirigiu-se para o lobo e abraçou-o.

         E foi-se a ovelha!…

         Muito padecem os bons que julgam os outros por si.

                                                                       *****

            – Bem feito! – berrou Emília. – Uma burrinha dessas o melhor que podia fazer era o que fez: entrar na boca do lobo. E, além disso, ovelha eu nem considero como bicho…

            – Que é, então? – perguntou Narizinho admirada.

            – É um novelo de lã por fora e costeletas por dentro. Ovelha é muito mais comida do que bicho. Não se defende, não arranha, não morde – é só bé, bé, bé… Bem feito! Eu gosto das feras. São batatais. Urram, e é cada unhaço que arranca lanhos de carne do inimigo.

            – Mas o ato da raposa você não pode aprovar porque foi traição – disse a menina.

            – Isso é verdade. Para uma raposa dessas, só tiro na orelha. Vou fazer uma fábula em que a raposa, em vez de sair ganhando, perde. Uma fábula assim…

            E começou a inventar a fábula da “raposa que levou na cabeça”.

 

49 – O rato e a rã

         Estava um ratinho sem experiência da vida tomando fresco à beira da lagoa, quando surgiu à tona uma rã velhaca.

         – Bom dia, Rói-Rói! Que faz aí, tão pensativo?

         – Estou admirando a beleza destas águas e invejando a felicidade dos que podem viver nela.

         – Tem razão de invejar-nos, ratinho. É lindo isto aqui dentro, mas não é para bico de rato. Ah, se você conhecesse a margem oposta!… Que beleza! Algas que boiam, libelinhas que esvoaçam. Quer ir até lá?

         – Querer, quero. Mas como, se nado tão mal?

         – Isso é o de menos. Posso atar você à minha pata e levá-lo de reboque.

         O ratinho aceitou. A rã trouxe uma embira, amarrou pata com pata e pôs-se a nado rebocando o ingênuo. Ao chegar em lugar fundo, a rã, que o que queria era afogar o ratinho, mergulhou, procurando arrastá-lo consigo. Mas o ratinho em apuros pôs a boca no mundo, pererecou, gritou por socorro e resistiu aos empuxões da rã com quantas forças tinha.

         Nisso, um gavião que ia passando ouviu o barulho, desceu qual uma flecha e agarrou o mísero. Ao tirá-lo d’água, porém, viu a rã encambada nele e exclamou radiante:

         – Ora viva, que estou com sorte! Atirei no que vi e matei o que não vi. Meu jantar vai ser de carne e peixe. E foi para o alto de uma árvore engolir os petiscos – castigando, sem o saber, a traição da rã e a imprudência do ratinho.

                                                                       *****

            – Esta fábula, vovó, não me parece fábula – parece historinha que não tem moralidade. “Passo.”

            – Eu também “passo” – disse Pedrinho.

            – Eu, idem! – berrou Emília.

            E Dona Benta teve de contar a seguinte, que era a do lobo e do cordeiro – um suco!

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