apolo e jacinto, 6.
luis vigiou teófilo por mais dois dias. não sorria, não falava; se não estava ao pé do leito, perdia-se vigiando os detalhes do cabo de seu punhal. teófilo respeitava aquele silêncio e aquele afastamento. lembrava do mistério de luis, ele não mencionou o que acontecera quando visitara as galerias. não reagia, também, porque seu espírito como que hibernasse dentro de um espanto medroso. era melhor esperar.
bateram na porta. teófilo olhou pelo buraquinho é o padre deite-se e finja que dorme eu mesmo abro:
veja, eu posso beijar o crucifixo. posso recitar qualquer oração.
não se trata de demônio. Se demônio houver será uma maneira simbólica de falar de algo que sinto dentro de mim. Mas não tenho mais medo. serenou tudo. Foi como uma descoberta que fiz, agora é acostumar-me a ela. na verdade, padre, quer dizer, tive um sonho estranho na véspera do chicote e do desmaio e fiquei perturbadíssimo. por isso eu me vergastei. Maldito chicote, não valia cada chicotada a metade de cada fluxo expelido.
claro, claro que melhorei fisicamente.
isto mesmo. penso em descer amanhã.
não. ele me visitará diariamente pra estudar comigo. tem muito talento. mas por que perguntou isto?
hans não deve se preocupar. ele não me incomodou em nada. pelo contrário, foi como um mensageiro do céu, que me trouxe serenidade. conversamos durante todo o tempo.
o senhor tem razão, padre. são como enviados do senhor.
é, é um pouco arteiro. mas isto é da idade. ah!, lembrei-me, como estão os prisioneiros?
mas o que tem o povo com isto?
sim, talvez o senhor tenha razão. digamos que poderíamos mandar enforcar seis deles.
por que um me parece inocente. aliás, não só um, mas dois. isto mesmo. estive a conversar com eles e eles mesmos declararam a inocência dos dois.
não, não acredito. quem pode garantir que eram sete?, os ladrões assassinos daquele desfiladeiro. poderia ter-se dado que prenderam todos os que estavam na montanha e dois camponeses inocentes foram apanhados junto aos malfeitores.
sim, padre, mas depois de preso, qualquer homem vira fera. quer dizer que o povo aguarda uma festa?
penso que amanhã resolverei. para esta noite preciso de um favor seu. gostaria de me misturar às pessoas, ouvir o que falam por aí a respeito dos ladrões. mas temo que, vestido como ando, eles me reconhecerão. o senhor não quer me emprestar o hábito para um disfarce?
é de fato uma idéia esquisita; mas gostaria de pô-la em prática.
é. com efeito. ele tem o meu corpo, é mais alto que o senhor. acha que concordaria em emprestar? tenho lido de senhores que se vestem de religiosos pra se misturar aos camponeses.
e o senhor o traria para mim?
aliás, acho melhor entregá-lo a luis. quero acertar com ele as lições que veremos a partir de amanhã.
quando ele acordar, mando procurá-lo.
eu agradeço sua vinda, padre. não há motivos para preocupação. vou fechar a porta.
não, ela não precisa subir agora. ela tem vindo após a segunda refeição, para passar o unguento nas minhas costas. apesar de eu já estar quase bom.
até amanhã…
viu que golpe vou dar? você descerá daqui a pouco e me trará o hábito. à noite, descerei para confessá-lo.
luis levantou-se rápido, assustado. confessar quem?
os criminosos!
Por que falei confessá-lo e não confessá-los?
sabe?, luis, penso que um deles é inocente.
mas a voz saiu tão falsa!, a desculpa soou tão medrosa!, a frase tropeçou tanto! e com que tremor foi pronunciada cada palavra! luis baixou o olhar.
Parece que compreende tudo. Poderia falar algo rápido, pra quebrar este silêncio. quer ir comigo?
confessá-lo?
Por que perguntei isto? E se ele quiser ir, que perguntas farei ao preso?
bem, você poderia ir comigo como se fosse meu ajudante. já viu um preso de perto?
luis não respondeu. levantou-se, foi até o baú e começou a mexer nele, mas suas mãos tremiam.
tenho uma coisa pra te dizer, luis. não sei se vai me entender. eu… eu… sou muito…corajoso. é, corajoso. sempre quero ir até o fim… pra ver o que acontece. você entende isso?
não.
é difícil pra uma pessoa da minha idade conversar com uma criança… um rapaz… novo como você. posso falar uma coisa, você entende outra, é muito complicado.
isto eu entendo. eu acho que… também estou ficando muito corajoso.
eu não tenho medo de me provocar, como se quisesse ver até que ponto eu resistirei. consegue entender?
teófilo foi até ele e o olhou firme. encontrou um olhar muito brilhante. ambos estremeceram, magnetizados. uma leve contração nos lábios de luis, um fulgor incendiário nos olhos de teófilo.
Não entendo este menino. Não entendo, não entendo. Parece que vou ficar louco! Por que este olhar? Ele sempre me faz baixar os olhos. O que significa esta maneira de me olhar? Posso estar imaginando, não sei. Ele é muito menino, muito, muito, muito, muito, eu não tenho nenhum direito. Preciso controlar esta respiração aflita. afastando-se, olhando pela janela, tentando distrair-se com uma figura lá longe, no meio do trigal.
Esses silêncios são piores que tudo. Mas, se falo, temo me trair. E se o olho, ele me tonteia.
quer que eu vá embora? baixo, rouco, estremecido.
não!, não!, não! de jeito nenhum! fique até a hora que quiser.
mas nenhum dos dois falou mais nada. teófilo procurou acalmar-se, aboliu os pensamentos, aboliu emoções, aboliu gestos, deixando-se cair numa cadeira, braços e pernas paralisados. o olhar se plantara na sua cabeça, como uma bandeira que indica derrota. não o olhar, mas a lembrança do olhar, a memória da emoção estranha que sentira ao receber o olhar e ele se assustava mais por perceber que o que sentia agora era maior do que no momento em que fora inundado com aquela luz repentina. como uma facada que assusta quando fere mas é depois que a dor surge, insuportável, Sim, como se fosse uma facada que não doesse na hora mas me vem agora trazer estas contorções internas e esta fogueira no meu coração e acho que é por isso que meu coração pula e se agita mas de que maneira me acalmar?
E por que estaria acontecendo isto comigo? Eu, que andava tão distraído e tão completo e tão decidido e é como se um monstro se escondesse nalguma curva do meu caminho e ao ouvir meu respirar tranquilo e meu passo seguro, deu o bote e ferrou os dentes nas carnes da minha segurança, fazendo jorrar o sangue do desejo e libertando um dragão que jazia adormecido. E por que monstro ou dragão?, se é graças a isto que o mundo me surge agora tão cheio de luz!
Tenho medo dessa luz, não posso confiar nesse brilho! Não!, não!, não!, não! Não sei o que fazer! Você aqui, tão junto de mim, e bastaria que eu me levantasse e o abraçasse e, acariciando seus cabelos, eu o beijasse como se beija a cortesã, com a boca aberta, sugando sua língua, apertando-o tão sofregamente até que o seu prazer rebentasse, abrindo caminho e explodindo violento, molhando suas roupas. Mas você choraria. Você choraria? Não!, não!, não!, não posso fazer você chorar! Luis, luis, o que sou diante de você?, pareço uma folha trêmula, um bichinho medroso, um nada, um nada, um nada.
Um nada!
bateram na porta. luis, que até então se mantivera inquieto e excitado, cravando o punhal na trave, correu até a porta, saindo quando a senhora entrou com a cerâmica cheia de unguento.
luis! foi até a porta e falou baixo para o jovem que tinha parado. procure o padre. diga que o mandei até ele. voltando aliviado, por ter conseguido se despedir, Mesmo sendo apenas este estranho sorriso que esbocei, valeu a pena porque ele sorriu pra mim mas por que teria saído correndo?
conversei com o padre. ele está contente com você. disse que você está tranquilo.
não estou mais preocupada. não há o que perdoar. acho que estas coisas acontecem. você se confessou?
como você quiser. eu acho que entendo…
teófilo tirou a camisa e deitou-se de bruços. as mãos iam e vinham, a pomada trazia um frescor agradável. começou a sentir sono.
Ela é incansável… olhar vazio… tão distante… tão distante… gestos mecânicos, como este roçar de unguento nas minhas costas que felizmente não doem mais e que coisa estranha ela está falando e eu estou respondendo e nem sei do que se trata.
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