Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 64, 65, 66, 67, 68, 69 e 70

 

64 – A galinha dos ovos de ouro

         João Impaciente descobriu no quintal uma galinha que punha ovos de ouro. Mas um por semana apenas. Louco de alegria, disse à mulher:

         – Estamos ricos! Esta galinha traz um tesouro no ovário. Mato-a e fico o mandão aqui das redondezas.

         – Por que matá-la, se conservando-a você obtém um ovo de ouro de sete em sete dias?

         – Não fosse eu João Impaciente! Quer que me satisfaça com um ovo por semana, quando posso conseguir a ninhada inteira num momento?

         E matou a galinha. Dentro dela só havia tripas, como nas galinhas comuns, e João Impaciente, logrado, continuou a marcar passo a vida inteira, morrendo sem vintém.

         Quem não sabe esperar, pobre há de acabar.

                                                        *****

            – Eu, se fosse o fabulista – disse Pedrinho –, mudava o título desta fábula. Punha “O palerma”. Só mesmo um palerma como esse João Impaciente podia fazer uma coisa assim.

             Dona Benta não concordou.

            – Ah, meu filho, isso de esperar não é fácil. Quantas vezes você mesmo não perdeu uma coisa que muito desejava por excesso de impaciência, por não ter tido a sabedoria de esperar…

            – Ainda ontem, vovó, ele quase pegou uma saíra das raras – ajuntou Narizinho. – Mas não esperou que ela entrasse bem, bem, bem na armadilha. Puxou o cordel antes do tempo. Pedrinho também é palerma às vezes, por falta de paciência. Eu sim, sei esperar.

            – E por isso mesmo não pegou aquela pulga que estava em sua cama – disse Emília. – Ficou esperando que a pulga parasse de pular e a pulga afinal sumiu.

            A especialidade de Emília era pegar pulgas.

 

65 – A garça velha

         Certa garça nascera, crescera e sempre vivera à margem de uma lagoa de águas turvas, muito rica em peixe. Mas o tempo corria e ela envelhecia. Seus músculos cada vez mais emperrados, os olhos cansados – com que dificuldade ela pescava!

         – Estou mal de sorte, e se não topo com um bom viveiro de peixes em águas bem límpidas, certamente que morrerei de fome. Já se foi o tempo feliz em que meus olhos penetrantes zombavam do turvo desta lagoa…

          E de pé num pé só, o longo bico pendurado, pôs-se a matutar naquilo até que lhe ocorreu uma ideia.

         – Caranguejo, venha cá! – disse ela a um caranguejo que tomava sol à porta do seu buraco.

         – Às ordens. Que deseja?

         – Avisar você de uma coisa muito séria. A nossa lagoa está condenada. O dono das terras anda a convidar os vizinhos para assistirem ao seu esvaziamento e o ajudarem a apanhar a peixaria toda. Veja que desgraça! Não vai escapar nem um miserável guaru.

         O caranguejo arrepiou-se com a má notícia. Entrou na água e foi contá-la aos peixes. Grande rebuliço. Graúdos e pequeninos, todos começaram a pererecar às tontas, sem saberem como agir. E vieram para a beira d’água.

         – Senhora dona do bico longo, dê-nos um conselho, por favor, que nos livre da grande calamidade.

         – Um conselho?… – E a matreira fingiu refletir. Depois respondeu:

         – Só vejo um caminho. É mudarem-se todos para o poço da Pedra Branca.

         – Mudar-se como, se não há ligação entre a lagoa e o poço?

         – Isso é o de menos. Cá estou eu para resolver a dificuldade. Transporto a peixaria inteira no meu bico.

         Não havendo outro remédio, aceitaram os peixes aquele alvitre – e a garça os mudou todos para o tal poço, que era um tanque de pedra, pequenino, de águas sempre límpidas e onde ela sossegadamente poderia pescá-los até o fim da vida.    

         Ninguém acredite em conselho de inimigo.

                                                        *****

            – Eu não acredito nem em conselhos de amigos, quanto mais de inimigos – disse Emília. – Não quero que me aconteça o que aconteceu com o Coronel Teodorico.

            Ninguém entendeu. Emília explicou: – Ele foi para o Rio de Janeiro depois da venda das terras e acabou sem vintém. Por quê? Porque acreditou nos conselhos dos amigos do seu dinheiro. Até bondes o burrão comprou! Eu, quando me dão algum conselho, fico pensando comigo mesma: “Onde é que está o gato?”. Porque há sempre um gato escondido dentro de cada conselho.

            Dona Benta arregalou os olhos. Como estava ficando sabida aquela diabinha.

            – E em que você acredita, então? – perguntou o Visconde. Emília respondeu:

            – No meu miolo. Não vou em onda nenhuma, nem de inimigo nem de amigo. Cá comigo é ali na batata do cálculo…

 

66 – O leão e o ratinho

         Ao sair do buraco viu-se um ratinho entre as patas do leão. Estacou, de pelos em pé, paralisado pelo terror. O leão, porém, não lhe fez mal nenhum.

         – Segue em paz, ratinho; não tenhas medo de teu rei.

         Dias depois o leão caiu numa rede. Urrou desesperadamente, debateu-se, mas quanto mais se agitava, mais preso no laço ficava. Atraído pelos urros, apareceu o ratinho.

         – Amor com amor se paga – disse ele lá consigo e pôs-se a roer as cordas. Num instante conseguiu romper uma das malhas. E como a rede era das tais que rompida a primeira malha as outras se afrouxam, pôde o leão deslindar-se e fugir.

         Mais vale paciência pequenina do que arrancos de leão.

                                                                       *****

            – Isso é verdade – comentou Narizinho. – Não há o que a paciência não consiga. Lá na cachoeira há um buraco na pedra feito por um célebre pingo d’água que cai, cai, cai há séculos.

            – E há um ditado popular para esse pingo – ajuntou Pedrinho –: Água mole em pedra dura tanto dá até que fura.

            – Quem faz os ditados populares, vovó?

            – O povo, minha filha. Os homens vão observando certas coisas e por fim formam um ditado, ou rifão, ou provérbio, ou adágio, ou dito, no qual resumem o que observaram. Esse dito do pingo d’água que tanto dá até que fura é muito bom – bonitinho e certo.

            – Foi o meio de vencermos a Cuca naquela nossa aventura do Saci – lembrou Pedrinho. – A Cuca não tinha medo de coisa nenhuma, porque era poderosa. Mas quando se viu imobilizada pelos cipós com que a amarramos e com aquele pingo d’água a lhe pingar na testa, cedeu. Entregou o pito, como diz Tia Nastácia.

 

67 – O orgulhoso

         Era um jequitibá enorme, o mais imponente da floresta. Mas orgulhoso e gabola. Fazia pouco das árvores menores e ria-se com desprezo das plantinhas humildes. Vendo a seus pés uma tabua, disse:

         – Que triste vida levas, tão pequenina, sempre à beira d’água, vivendo entre saracuras e rãs… Qualquer ventinho te dobra. Um tiziu que pouse em tua haste já te verga que nem bodoque. Que diferença entre nós! A minha copada chega às nuvens e as minhas folhas tapam o sol. Quando ronca a tempestade, rio-me dos ventos e divirto-me cá do alto a ver os teus apuros.

         – Muito obrigada! – respondeu a tabua ironicamente. – Mas fique sabendo que não me queixo e cá à beira d’água vou vivendo como posso. Se o vento me dobra, em compensação não me quebra e, cessado o temporal, ergo-me direitinha como antes. Você, entretanto…

         – Eu, quê?

         – Você, jequitibá, tem resistido aos vendavais de até aqui; mas resistirá sempre? Não revirará um dia de pernas para o ar?

         – Rio-me dos ventos como me rio de ti – murmurou com ar de desprezo a orgulhosa árvore.

         Meses depois, na estação das chuvas, sobreveio certa noite uma tremenda tempestade. Raios coriscavam um atrás do outro e o ribombo dos trovões estremecia a terra. O vento infernal foi destruindo tudo quanto se opunha à sua passagem. A tabua, apavorada, fechou os olhos e curvou-se rente com o chão. E ficou assim encolhidinha até que o furor dos elementos se acalmasse e uma fresca manhã de céu limpo sucedesse àquela noite de horrores. Ergueu, então, a haste flexível e pôde ver os estragos da tormenta. Inúmeras árvores por terra, despedaçadas, e entre as vítimas o jequitibá orgulhoso, com a raizama colossal à mostra…

         Quanto maior a altura, maior o tombo…

                                                        *****

            – Que é tabua, vovó? – perguntou Pedrinho.

            – Ora, meu filho! Então não sabe o que é tabua?

            – Sei o que é tábua…

            – Pois tabua é uma planta da família das tifáceas, muito comum aqui nos nossos brejos e de cujas folhas, compridas como espadas, a gente da roça faz esteiras.

            – Ah, sei! É até uma planta muito importante – a mais importante de todas, porque a gente da roça só dorme em esteira. Mas eu não digo tabua, vovó, digo piri.

            – Piri é planta parecida, meu filho, não é a mesma.

            Emília achou que a moralidade da fábula estava certa, mas…

            – Mas o quê, Emília?

            – Mas entre ser tabua e ser jequitibá prefiro mil vezes ser jequitibá. Prefiro dez mil vezes!

            – Por quê? – Porque o jequitibá é lindo, é imponente, é majestoso, só cai com as grandes tempestades; e a tabua cai com qualquer foiçada dos que vão fazer esteiras. E depois que viram esteiras têm de passar as noites gemendo sob o peso dos que dormem em cima – gente feia e que não toma banho. Viva o jequitibá!

            Dona Benta não teve o que dizer.

 

68 – O egoísmo da onça

         Ao voltar da caça, com uma veadinha nos dentes, a onça encontrou sua toca vazia. Desesperada, esgoelou-se em urros de encher de espanto a floresta. Uma anta veio indagar do que havia.

         – Mataram-me as filhas! – gemeu a onça. – Infames caçadores cometeram o maior dos crimes: mataram-me as filhas… E de novo urrou desesperadamente, espojando-se na terra e arranhando-se com as unhas afiadas.

         Diz a anta:

         – Não vejo motivo para tamanho barulho… Fizeram-te uma vez o que fazes todos os dias. Não andas sempre a comer os filhos dos outros? Inda agora não mataste a filha da veada?

         A onça arregalou os olhos, como que espantada da estupidez da anta.

         – Ó grosseira criatura! Queres então comparar os filhos dos outros com os meus? E equiparar a minha dor à dor dos outros?

         Um macaco, que do alto do seu galho assistia à cena, meteu o bedelho na conversa.

         – Amiga onça, é sempre assim:

         pimenta na boca dos outros não arde…

                                                        *****

            Na voz de “pimenta”, Tia Nastácia veio lá da cozinha, com a colher de pau na mão.

            – Pimenta, Sinhá? É o que está me fazendo falta hoje. Acabou-se aquela do vidro de boca larga e não sei como me arranjo com o vatapá de amanhã…

             Todos caçoaram da pobre preta.

            – Não é isso, boba. Estamos “fabulando” a pimenta que não arde na boca dos outros.

            A negra não entendeu.

            – Não arde? Quem disse que não arde? Só não arde se não for das ardidas.

            Dona Benta ficou com preguiça de explicar e deu-lhe ordem de fazer o vatapá sem pimenta.

            – Ché! Fica sem graça, Sinhá. Feijão sem sal, vatapá sem pimenta e café requentado é jantar estragado.

 

69 – O imitador dos animais

         Pedro Pereira Pedrosa tinha uma habilidade rara: imitava na perfeição a voz dos animais. O coim-coim do porco, o au-au do cachorro, o bé do carneiro, o relincho do burrico, tudo ele reproduzia de modo a enganar todo mundo.

         – É tal e qual – diziam os ouvintes maravilhados.

         Um dia apareceu na cidade um homem se propondo a derrotar o imitador.

         – Vamos os dois imitar em público a voz de um porquinho; e se eu não ganhar a partida, cortem-me a cabeça!

         Chega o dia. Enche-se o teatro. Pedro aparece confiante na vitória e imita leitão novo de modo a entusiasmar o público.

         – O outro agora! O outro!… – berra a assistência.

         Apareceu o outro, embrulhado num capotão. Preparou-se, remexeu-se e, de repente:

         – Coim! Coim! Coim!

         Vaia estrondosa.

         – Fora! Fora! Pedro ganhou! Pedro imita melhor! Fora…

         O sujeito abriu o capote e suspendeu pelas orelhas um leitãozinho que trazia oculto.

         – Vaiai, senhores, vaiai o verdadeiro autor dos coinchos, pois foi este porquinho quem berrou e não eu…

         Os espectadores entreolharam-se encafifadíssimos.

         Mais vale cair em graça do que ser engraçado.

                                                        *****

            – Apoiadíssimo! – exclamou o Visconde. – Mais vale cair em graça do que ser engraçado. Eu, por exemplo, tenho sido bem engraçadinho em várias ocasiões – mas quem cai em graça é sempre outra pessoa…

 

70 – O burro sábio

         No tempo em que os animais falavam, uma assembleia de bichos se reuniu para resolver certa questão. Compareceu, sem ser convidado, o burro, e pedindo a palavra pronunciou longo discurso, fingindo-se estadista. Mas só disse asneiras. Foi um zurrar sem conta.

         Quando concluiu, ficou à espera dos aplausos; mas o elefante, espichando a tromba para o seu lado, disse:

         – Grande pedaço de asno! Roubaste o tempo, a nós e a ti. A nós, porque o perdemos a ouvir asneiras; e a ti, porque muito mais lucrarias se o empregasses em pastar capim.Toma lá este conselho:

         Um tolo nunca é mais tolo do que quando se mete a sábio.

                                                        *****

            – Está aí uma fábula inútil – disse Pedrinho. – Diz a mesma coisa que a do asno e do burro.

            – Sim, meu filho. É uma variante. Serve para mostrar que uma mesma verdade pode ser expressa de modos diferentes.

            – Continuo a achá-la inútil – insistiu Pedrinho. – Se veio para provar isso, perdeu o tempo, porque nada mais claro que todas as coisas podem ser ditas de muitas maneiras.

            O Visconde contestou. – Isso também não, Pedrinho. As verdades científicas só podem ser ditas de uma maneira. Quando eu pergunto “Quanto é um mais um?” a resposta só pode ser “Dois”.

            – E o “Onze” onde fica, Visconde? – berrou Emília. – Um mais um também dá onze.

            O sabuguinho científico atrapalhou-se.

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