Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho

MONTEIRO LOBATO

 Caçadas de Pedrinho

Capítulos 9 e 10

 

9 – Emília vende o rinoceronte

               Emília tratou de procurar outro freguês. Foi à cozinha e propôs o negócio à Tia Nastácia. A negra, que estava depenando uma galinha, nem a ouviu no começo; depois, como Emília amolasse, disse apenas, em tom de brincadeira:

               – Era só o que faltava, esse bicho de nome esquisito aqui para meter medo na gente! Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando.

               Para Dona Benta era inútil oferecer. A pobre senhora tinha horror a bichos, sobretudo depois que teve de meter-se em pernas de pau no dia do assalto das onças.

               O Visconde seria capaz de aceitar, porque os fidalgos adoram as grandes caças – mas o pobre Visconde pertencia à classe dos fidalgos arruinados que só possuem o seu título de nobreza. Nunca teve de seu nem sequer um tostão furado.

               Narizinho… Rabicó…

               Estava Emília na maior indecisão quando a Cléu apareceu.

               – Cléu – disse a boneca -, tenho um negócio excelente que ando a propor a todos e ninguém aceita. Pedrinho não acredita, Tia Nastácia não quer, o Visconde não tem dinheiro, com Rabicó e Narizinho ainda não falei.

               – Que espécie de negócio é? – perguntou a menina.

               – Venda ou troca? – Venda ou troca de um animal preciosíssimo que descobri na mata.

               – Vai ver que é um rinoceronte! – sugeriu Cléu.

               Emília ficou admiradíssima.

               – Como sabe? Como adivinhou?

               – Esperteza – respondeu Cléu. – Estou lendo nos seus olhos, Emília, que você é dona dum enorme rinoceronte de verdade.

               – Sério? – Seriíssimo!

               Emília foi examinar-se ao espelho e achou que realmente estava com cara de dona de rinoceronte. Os sábios chamam a esse fenômeno “sugestão”.

               – Bem – disse Emília, de volta do espelho. – Você adivinhou, Cléu. Tenho mesmo um rinoceronte para vender. Quer comprar?

               – Não. Mas posso associar-me a você no negócio. Arranjarei jeito de vendê-lo a Pedrinho e metade do dinheiro é meu. Serve?

               – Não quero vendê-lo por dinheiro e sim trocá-lo pelo carrinho de cabrito.

               – Nesse caso eu terei metade do carrinho, as rodas, por exemplo – lembrou Cléu, mais para amolar a boneca do que por desejar realmente possuir as tais rodas.

               Emília refletiu uns instantes. Depois disse:

               E você mais tarde me dá de presente as rodas? Cléu teve dó da afliçãozinha dela.

               – Dou, sim, dou desde já. Estou brincando. Não preciso, nem quero roda nenhuma. Ajudarei você a vender o rinoceronte sem cobrar comissão nenhuma.

               Emília deu dois pinotes – e as duas foram ter com Pedrinho, que ainda estava lendo o jornal.

               – Escute, Pedrinho – disse a boneca, tirando-lhe o jornal das mãos. – Vou ser franca. O tal rinoceronte que fugiu do circo existe, sim, e por um acaso descobri o lugar onde ele está. Juro! Ora, se você nos promete dar o carrinho de cabrito em troca, o negócio está feito.

          Pedrinho estranhou aquele ‘nós’.

               – Nos? – repetiu ele, admirado. – Nos, quem?

               – Eu e Cléu. Ela é sócia, tem metade do rinoceronte. O tom com que Emília falava começou a convencer o menino.

               – Sério, Emília? Está falando sério?

               – Nunca na minha vida falei tão a sério, Pedrinho. Sei onde está o rinoceronte fugido, mas só direi se você me der…

               – Nos der… – corrigiu Cléu.

               – Sim, se você nos der o carrinho.

               Um rinoceronte de verdade por um carrinho de cabrito era o melhor negócio do mundo. Pedrinho não vacilou um instante.

               – Pois está fechado! – gritou ele. – Onde anda o bicho?

               – Na mata dos Taquaruçus.

               – Como o descobriu, Emília?

               – Os meus besouros espiões são uns amores. Tudo o que se passa no mato eles correm a me contar. Inda há pouco vieram, muito assustados, dizer do aparecimento dum animalão enorme, assim, de chifre único na testa – e percebi que se tratava do rinoceronte fugido.  Era espantoso aquilo. Pedrinho sentiu o seu coração palpitar com violência. Um rinoceronte! Um rinoceronte de verdade, morando no sítio de Dona Benta! Não podia haver nada mais fantástico…

               – Resta agora decidir o que faremos dele – murmurou o menino, atrapalhado. – Matá-lo, caçá-lo, prendê-lo, devolvê-lo ao circo, amansá-lo, conservá-lo?… Que fazer?

               – Acho que vocês devem amansá-lo e fazê-lo entrar para o bandinho – sugeriu Cléu. – Sempre achei que fazia muita falta aqui um bicho assim, dos grandes.

               – Impossível, Cléu – disse Pedrinho. – Esses animais, além de ferocíssimos e traiçoeiros, são incomodamente grandes. Não cabem em parte nenhuma. E depois há ainda vovó e Tia Nastácia – as duas maiores medrosas do mundo. Se conservarmos o rinoceronte aqui no sítio, elas se trancarão em casa pelo resto da vida. São bobíssimas. Mas é coisa que veremos depois. Agora temos de ir espiar o bicho.

               Guiados pela Emília, foram os três ao encontro dos besouros, que justamente naquele instante estavam voltando a si do longo desmaio.

               – Onde está o rinoceronte? – perguntou-lhes Pedrinho, ao chegar.

               Mal acordados ainda, e ignorantes do que significava a palavra “rinoceronte”, os pobres besouros olharam apatetadamente para o menino.

               Emília interveio, explicando que só ela sabia falar com aqueles bichinhos.

               – Escutem – disse ela –, queremos saber onde ele está. Os besouros entenderam e deram indicações do ponto exato onde ele se achava escondido.

               Pedrinho, que conhecia a moita de taquaruçus, encaminhou-se para lá.

               Meia hora depois chegaram todos a um ponto onde a moita se abria em clareira, tendo dum lado a Figueira-Brava, debaixo da qual os bichos costumavam reunir-se em assembleia, e do outro, a tal moita de taquaruçus. Chegaram, espiaram e nada.

               – Vejo lá adiante uma pedra preta – disse Cléu, apontando para um rochedo de dorso redondo que os capins altos meio escondiam. – De cima talvez possamos avistar o monstro.

               Correram todos para a tal pedra, treparam-lhe em cima e do alto espiaram por entre as árvores em todas as direções. Nada! Nem sombra de rinoceronte.

               – Emília – disse Pedrinho, desapontado -, não há rinoceronte nenhum por aqui. Os senhores besouros nos tapearam da maneira mais indigna. Como castigo, merecem ser depernados de todas as perninhas. Se eu fosse você…

               Pedrinho não pôde concluir. A pedra mexeu-se! Não era pedra – era o próprio rinoceronte que se tinha deitado naquele ponto para dormir…

               O pulo que eles deram merecia ir para um quadro na parede, com moldura de ouro, pois foi o mais rápido e belo pulo que ainda se deu no mundo. Mas como o rinoceronte era pesadão, enquanto se punha em pé os quatro caçadores alcançavam o mais alto galho da Figueira-Brava, donde podiam vê-lo sem perigo nenhum.

               – Realmente! – exclamou Pedrinho, lá no seu poleiro. – É rinoceronte dos legítimos. Vejam que formidável chifre tem na testa e que terrível couraça no corpo…

               – A onça nós matamos – disse Narizinho -, mas este bicho cascudo não há meio. Bala não entra, faca não entra. Como iremos nos arranjar?

               – O jeito é passarmos um telegrama para o Rio de Janeiro, contando às autoridades que o rinoceronte que elas procuram está aqui. O pessoal lá tem canhões e metralhadoras. Que acha, Emília?

               Emília estava de ruguinha na testa, sinal de “ideia-mãe” em formação.

               – Acho – respondeu – que não devemos mandar telegrama nenhum nem falar nisto a ninguém. Do contrário o sítio se entope de gente grande e adeus! Gente grande estraga tudo. Eu não aturo gente grande.

               Os outros também, mas o caso era muito especial, muito sério mesmo, de modo que não havia remédio senão pedirem socorro à gente grande. Pelo menos Dona Benta tinha de ser avisada. O sítio, afinal de contas, era dela; o rinoceronte invadira a sua propriedade – natural pois que, como dona, ela resolvesse o caso. E foi decidido darem parte a Dona Benta do extraordinário acontecimento.

               Mas como descer da árvore com aquele perigo chifrudo embaixo? O rinoceronte se havia posto de pé, embora sem mostrar intenção nenhuma de afastar-se dali. Tosava as copas dos arbustos vizinhos e mascava as folhas com um sossego de boi de carro.

               Quem salvou a situação foi a boneca.

               – Tenho cá no meu bolsinho do avental uma isca do pó de pirlimpimpim. Se não perdeu a força, poderá levar-nos até ao terreiro.    Pedrinho arregalou o olho. Pó de pirlimpimpim no bolso da Emília? Como isso? Será que a boneca virará gatuna?

                – Não furtei coisa nenhuma – protestou Emília, percebendo na cara de Pedrinho a desconfiança. – Não sou nenhuma ladrona, fique sabendo.

               – Como então obteve esse pó?

               – Muito simples. Quando fomos ao País das Fábulas e você me deu a pitada que eu devia tomar, tomei só meia pitada. O resto guardei no meu bolsinho para o que desse e viesse. Chegou agora a ocasião.     Foi uma grande alegria. Graças à providência da boneca iam todos salvar-se daqueles apuros. Mas no bolso da Emília só se encontrava meia pitada. Dividida entre quatro, caberia um oitavo de pitada a cada um.

               – Bastará, Pedrinho? – perguntou Cléu.

               – Basta. Com um oitavo iremos parar justamente no terreiro da casa. Assim sucedeu. Tomaram a pitadinha do pó maravilhoso e imediatamente se acharam no terreiro do sítio. Dona Benta estava na varanda, conversando com Tia Nastácia sobre assunto agrícola – um pé de couve que Rabicó havia tosado na horta.

               – Esse Marquês duma figa está precisando mas é de ir para o forno – dizia a preta, que nunca tomara muito a sério a fidalguia do leitão. – Nesse andar, protegido desse jeito pelos meninos, acaba virando aí um cachaço inútil, que ainda nos há de dar muito trabalho. Mas vá a gente falar nisso a Narizinho! A casa cai…

               Nesse momento surgiram no terreiro os meninos. Detiveram-se um instante, cochichando entre si, e depois se encaminharam para a varanda.

               – Temos novidade – resmungou Tia Nastácia. – Pedrinho está de mão no bolso e Emília, de ruguinha na testa. Esses sinais não falham. Credo!

               Pedrinho subiu à varanda e, sem nenhum preparo do terreno, foi contando a Dona Benta a história do rinoceronte encontrado.

               – Quê? Um rino… – repetiu a velha sem poder concluir a palavra.   – … ceronte, vovó, um rinoceronte real de chifre único na testa e aquela couraça duríssima no corpo. Está lá perto da Figueira-Brava.

               Dona Benta olhou para Tia Nastácia com ar de quem pede misericórdia.

               – Um rinoceronte! – gemeu a boa senhora, com voz moribunda. – Era só o que faltava, santo Deus! Que irá ser de nós?…

               A negra, que nada sabia a respeito de rinocerontes, ofereceu-se para ir espantar o bicho com o cabo da vassoura. Mas quando Narizinho lhe mostrou, na História natural, o retrato dum desses paquidermes e lhe explicou que tamanho tinham e que terrível era o chifre que possuem no meio da testa, a pobre criatura pôs-se a tremer da cabeça aos pés. – E agora, sinhá?

               E agora, sinhá? – murmurava, no meio dos credos e figarabudos e pelo-sinais que não cessava de murmurar e desenhar na cara e no peito.

               – Agora? – respondeu Dona Benta, depois de refletir uns instantes. – Agora temos que avisar a polícia do Rio para que tome providências, e enquanto isso ninguém tem ordem de sair desta casa. Dizem os naturalistas que o rinoceronte é talvez a fera mais traiçoeira e perigosa da África. Se apanha um de nós!…

               Emília quis meter a sua colherzinha torta e começou:

               – Dona Benta, eu acho que…

               Mas foi interrompida.

               – Pelo amor de Deus, Emília, não ache mais coisa nenhuma. É por causa de tantos achados que vivo aqui de susto em susto, com a alma na boca, atacada por onças e agora até com feras africanas perto de casa…

               Emília, desapontada, botou-lhe a língua, logo que a velha voltou as costas.

 

     10 – O Rio de Janeiro é avisado

               Dona Benta enviou um telegrama para o Rio de Janeiro que dizia assim: “Meus netos acabam de informar-me que o famoso rinoceronte, que andam procurando pelo país inteiro, acha-se escondido nas matas deste meu sítio. Encarecidamente peço providências imediatas. Benta de Oliveira”.

               Cléu, a quem ela ditara o telegrama, observou que era bom mudar a assinatura para Dona Benta de Oliveira, avó de Narizinho e Pedrinho e dona do Sítio do Pica-Pau Amarelo, pois do contrário lá no Rio todos ficavam na mesma. Bentas de Oliveira há muitas e “meus sítios” também há muitos.

               Dona Benta concordou.

               – Façam como quiserem, mas que o telegrama siga quanto antes. Chamem um camarada do compadre Teodorico para o levar à cidade, no galope.

               O telegrama foi passado naquele mesmo dia. Na manhã seguinte veio a resposta: “Seguem forças armadas sob comando detetive X B2” Fazia dois meses que o governo se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte fugido, havendo organizado o belo Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, com um importante chefe geral do serviço, que ganhava três contos por mês e mais doze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grande número de datilógrafas e “encostados”. Essa gente perderia o emprego se o animal fosse encontrado, de modo que o telegrama de Dona Benta os aborreceu bastante. Em todo caso, como outros telegramas recebidos de outros pontos do país haviam dado pistas falsas, tinham esperança de que o mesmo acontecesse com o telegrama de Dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem a certeza de que o rinoceronte estava mesmo lá, não viriam!

               Certa manhã, quando Tia Nastácia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua, deu com o animalão a vinte passos de distância, olhando para a casa com os seus olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo o baque de seu corpo, todos pularam da cama – e foi uma dificuldade fazê- la voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim, acordou e, de olhos esbugalhados, disse num fiozinho de voz:

               – O canhoto já foi embora?

               Ninguém sabia do que se tratava, porque ninguém ainda havia olhado para o terreiro.

               – Que canhoto é esse? – indagou Dona Benta.

               – O tal de um chifre só na testa – respondeu a negra. – Estava aí fora quando abri a porta…

               Só então os meninos espiaram pela janela e viram que o rinoceronte estava, de fato, no terreiro. Mas quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo agressivo. Olhava para a casa com toda a atenção, como se entendesse de arquitetura rural – isto é, de arquitetura de casas da roça. Depois, mansamente, dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado.

               – Pronto! – exclamou Narizinho. – Atravessou-se na porteira e quero ver agora quem entra ou sai. Estamos bloqueados…

               A aflição de Dona Benta aumentou. Viu que, de fato, estavam com a saída do sítio bloqueada por aquele monstruoso animal que parecia não ter a mínima intenção de afastar-se dali.

               Nesse momento viram um grupo de homens que se aproximavam.        – São eles! – gritou Cléu. – São os homens da polícia secreta que receberam o nosso telegrama. Secretas a gente conhece de longe!…

               E eram. Era o famoso grupo dos Caçadores do Rinoceronte, que se formara logo em seguida à fuga do misterioso paquiderme e que vinha percorrendo o país inteiro em sua procura. Comandava-os o espertíssimo detetive X B2, que tinha lido todos os fascículos das Aventuras de Sherlock Holmes existentes nas livrarias. Esses homens traziam consigo numerosas armas e armadilhas próprias para caçar rinocerontes – mundéus desmontáveis, ratoeiras de gigantescas proporções, correntes de aço, um canhão-revólver e uma metralhadora. A única coisa que não traziam era intenção real de apanhar o monstro. Assim que chegaram ao pasto do sítio e deram com o enorme paquiderme atravessado na porteira, começaram a discutir se atiravam ou não. Um queria que se empregasse o “mundéu desmontável”. Outro queria que se armasse a “ratoeira gigante”. Por fim, o detetive X B2 decidiu empregar o canhão-revólver.

               – Atirem – disse ele -, mas com pontaria que não venha a prejudicar os nossos empregados.

               Disse e piscou. O que todos queriam era passar toda a vida caçando aquele mamífero.

               Mas a Emília, que tinha terríveis olhos de retrós, viu de longe a piscadela cavorteira e percebeu a manobra.

               – Vão atirar e errar! – gritou ela muito contente, porque já estava criando amor ao “seu rinoceronte” e não queria que lhe estragassem o couro com um furo de bala; apenas admitia que o caçassem vivo.

               Ao ouvir aquilo Dona Benta protestou.

               Então não quero! – disse ela. – Se esses homens não têm boa pontaria, as balas podem passar por cima do alvo e virem quebrar algum vidro das nossas vidraças. Não quero!…

               E voltando-se para a Cléu, que tinha muito boa letra e sabia escrever com todos os ‘Fs’ e ‘Rs’:

               – Escreva uma carta ao chefe daqueles caçadores dizendo que não admito que atirem de lá para cá. O Visconde que leve a carta.

               Cléu escreveu a carta sem um erro, e pediu ao Visconde que a levasse. Como fosse pequenininho, o Visconde podia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido – e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo e havendo muitos sabugos no sítio, Tia Nastácia num momento fazia outro Visconde.

               O nobre mensageiro nem se deu ao trabalho de passar por trás do monstro. Subiu por cima dele como quem sobe um morro, e desceu do outro lado sem ser percebido. Depois foi correndo entregar a carta. Chegou no instantinho em que o artilheiro ia disparar o canhão.

               – Alto! – gritou o detetive X B2. – Deixe-me primeiro ler esta carta.

               Leu a carta, elogiou a boa letra e depois disse aos seus homens:          – A dona da propriedade não quer saber de tiros daqui para lá. Diz que as balas poderão quebrar os vidros das suas vidraças. Acho que ela tem toda a razão.

               – Nesse caso, que fazer? – perguntou o artilheiro.

               – Temos de passar para o lado de lá. Podemos colocar o canhão e a metralhadora na escadinha da varanda. Desse modo, se houver balas perdidas, poderão apenas alcançar algum macaco na floresta, lá longe.

               Muito bem. Mas como atravessar para o outro lado, com o canhão e a metralhadora, se a única passagem era pela porteira, e o inimigo estava deitado ali, de través? O problema tornava-se dos mais sérios. Requeria estudos. O detetive X B2 reconcentrou-se cheio de rugas na testa, a refletir. Refletiu e, depois de muito refletir, disse:

               – Antes de mais nada, temos de construir uma pequena linha telefônica que nos ponha em comunicação com a gente do sítio, a fim de que eu possa debater o caso com a Senhora Dona Benta e agir de acordo com ela e os demais moradores. Assim, por meio de cartas, a coisa levará toda a vida. Não há como o telefone para as comunicações rápidas. Vou telegrafar para o Rio de Janeiro, pedindo a remessa do material necessário para a construção duma linha telefônica.

               Resolvido isso, retiraram-se todos para a vila próxima, onde ficaram tocando violão e contando casos pândegos até que o material encomendado chegasse. Isso levou um mês. Mas afinal chegou, e o detetive deu ordem para que no dia seguinte os trabalhos fossem iniciados.

               Na manhã do dia seguinte os moradores do sítio viram reaparecer no pasto os caçadores do governo, seguidos duma turma de operários com rolos de arame, postes e mais coisas telefônicas. Nesse dia, porém, o rinoceronte falhou de vir deitar-se de atravessado na porteira, como era seu costume. O trânsito estava completamente livre.

               – Ué! – exclamou o detetive X B2, muito admirado. – Para onde terá ido o malandro do rinoceronte?

               Dirigiu-se à casa para falar com Dona Benta.

               – Como foi isso, Dona Benta? – disse ele, subindo à varanda. – Deixei o rinoceronte deitado na porteira e agora não encontro o menor sinal do bicho.

               Dona Benta explicou tudo quanto sucedera durante as semanas em que eles estiveram tocando violão na vila. O rinoceronte adquirira o hábito de passar o dia na Figueira-Brava, só vindo deitar-se à porteira lá pelas três horas da tarde.

               – Chega sempre a essa hora, deita-se e fica a cochilar até à noite – explicou a boa senhora. – É um animal bastante sistemático.

               – Bem – disse o detetive -, nesse caso teremos toda a manhã livre para trabalharmos na construção da linha telefônica.

               Dona Benta arregalou os olhos.

               – Que linha telefônica é essa? – perguntou.

               – A linha que resolvemos construir para ligar esta casa ao nosso acampamento. Como naquele dia o rinoceronte estivesse atravessado na porteira, impedindo a passagem, eu não pude discutir com a senhora vários assuntos importantes. Tive então a excelente ideia de construir essa linha, com os fios passando por cima do “obstáculo”.

         Dona Benta admirou-se da complicação.

         – Sim – disse ela -, mas já que o senhor pôde chegar até aqui, creio que a linha telefônica já não é mais necessária.

         O detetive sorriu da ingenuidade da velha e explicou que o material já havia chegado e que, portanto, a linha ia ser construída. Terminou piscando o olho vermelho e dizendo: – O Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte sabe o que faz, minha senhora.

         – Pois façam lá como entenderem – concluiu Dona Benta. – Não entendo de tais serviços, nem quero entender. Aqui estamos nós para prestar aos senhores toda a ajuda possível. O que quero é que o quanto antes me livrem desse animalão. Mas, meu caro senhor, esse negócio não está me parecendo sério…

         O detetive sorriu indulgentemente e respondeu:

         – É que a senhora não conhece as condições. Para nós é um negócio da maior importância, visto como dele tiramos o pão de cada dia…

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