o dia sem nome, 20

O dia sem nome, 20.

O carro foi parando de repente, deu uns saltos e morreu. Nenhum dos dois entendeu o escurecimento rápido e simultâneo, o escorregar pra baixo, o desmanchar-se sobre as poltronas de plástico, tudo consequência daquele tinido. O relógio do jovem atingiu duas horas, passou das duas, continuou um tempo, aumentando o seu atraso em relação ao exame de biologia que nunca foi feito. Próximo dali um disco tocou no silêncio, desligou-se e nenhuma mão gentil pode escolher novo sucesso para atrair a atenção dos passantes, que não passavam. Como no resto, houve fogo e água e poeira, cada vez menos, até que só a natureza, morta sem recurso, imperou soberana: dia e noite e dia e noite, não segunda nem lundi nem getsuyôbi. Frio e calor, não inverno nem lêto nem winter. Chuva e sol, o elemento, não a palavra. Abelhas que não mais existiam não se chamavam abelhas e não fabricavam o mel que não mais se chamava mel. O vinho apodreceu nos tonéis e não houve mais embriaguês divina nem satânica embriaguês. Não havia algo com o nome caranguejo, nem havia o nome caranguejo. Moribundos não agonizaram para morrer. As sujeiras venceram as donas de casa aflitas que não mais eram donas nem estavam mais aflitas. Nas fazendas o capim sumira, os animais se misturaram ao punhado de fezes de boi, de vaca, de ovelhas e cavalos e galinhas e patos, fezes puras de contágio, limpas de vírus, isentas de doença. O reitor não assinou a demissão do professor rebelde e não foi, por isso, elogiado pelos poderosos. Onde estavam os poderosos?
Vinte dias depois, junto à costa chilena, caiu no oceano um módulo espacial com cinco tripulantes. Tinham perdido todo o contato e perceberam que algo acontecera porque registraram com os aparelhos de emergência explosões, incêndios, escuridão total sobre as cidades. Vinham aflitos para descobrir a causa de tudo aquilo, foi puro acaso terem caído no mar, o controle de emergência era cheio de falhas. Dois deles se afogaram de imediato naquelas águas. Três chegaram à terra. Caminharam desolados, não havia planta no chão, não havia gente na cidade, não havia ave no céu. Nem uma mosca, nem uma serpente, nem um raminho. Perambularam em desespero, famintos, um enlouqueceu e se afastou em direção ao mar, falando sozinho. Os outros dois, unidos, esperaram a morte. Sentiam neles algo envenenado, como se estivessem se diluindo lentamente. Os dedos caíam, a carne amolecia e se soltava. Só os olhos ficaram, redondos, arregalados, olhando durante muito tempo aquele amontoado de coisas inúteis e silenciosas. Desde Treblinka, Auschwitz, Buchenwald, que o mundo não via aquele olhar, acusador e eterno. A palavra vergonha perdera o sentido.
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